Os infernos possíveis

contos de Ronaldo Bressane

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Em torno da mesa, os quatro acomodaram-se afoitamente nos pufes moles. Havia ainda um lugar vago. Mal se viam, tão escuro estava. Quando Cláudio acostumou-se à pequena claridade que vinha de um spot no alto pé-direito apontou, horrorizado, para o centro da mesa e perguntou, gaguejando:

– O-que-é-isso?

Walter tocou naquilo e recuou, a mão crispada, como que com nojo:

– Não pode ser isso que eu estou pensando.

– Aaargh! – fez Clara, ao realizar o que era.

– Aaargh! – fez Moema. Era muito amiga de Clara.

– Como isso veio parar aqui?

– Não-fui-eu! – silabou Cláudio, puxando com as pontas dos dedos a camisa empapada de suor, para todos os lados, como se se beliscasse para perceber que não era um sonho. Walter murmurou, engolindo meia ânsia de vômito:

– Não acredito que isso está aqui, justo hoje. Parece brincadeira. Quem de vocês trouxe?

Moema disse:

– Eu não fui! Vocês sabem como eu vim pra cá: sem malas, só a roupa do corpo. E ainda fui revistada, acho até que com um pouco de descortesia – e deu um apertão no joelho direito de Walter, por debaixo da mesa, sem que os outros notassem.

– É verdade – Clara reparou, aos berros; – e eu, como vim junto com ela, também não fui, também fui revistada, lembram? – e apertou o joelho esquerdo de Walter, que conteve um gemido.

– Cala a boca, Léo, não grita, podem ouvir – Moema pegou na mão da amiga, acalmando-a. Jogou os cabelos pra trás e o hálito de gengibre mascado sobre Walter: – Você e o Cláudio já estavam aqui antes, não pode ter sido um de vocês?

– Eu não estou agüentando olhar pra isso muito tempo – Cláudio continuava a se beliscar, o suor escorrendo por suas gordas faces – acho que vou ter que deixar a mesa…

– Ninguém sai! Ninguém pode sair dessa mesa até ele chegar, não foi o combinado?

– Puta que o pariu! Quando Ele ver isso… Ah, meu… – e o gemido de Cláudio foi cortado por Moema:

– Não continue! Nem comece o que ia falar! Deve ter sido você quem trouxe isso mesmo! – Clara esbraveja com Cláudio, que afundava a cabeça entre as diminutas mãos; os seios de Clara, quando ela se irritava, ficavam maiores do que pareciam: e era o que acontecia então – duros, pro alto, sob o suéter vermelho: – Eu quero saber o que o senhor Walter tem a dizer sobre isso aqui!

Os olhos fixos no objeto ao centro da mesa, Walter roía as unhas, já muito estragadas, algumas só no toco, e meneou a cabeça dum jeito que Moema achou muito charmoso, pois alguns fios se derramavam sobre sua testa longa dando-lhe um aspecto de poeta romântico. Ela subiu a mão pelo joelho direito de Walter, que para se dissuadir disso apressou-se: – Por favor, gente. Vamos manter a calma e recapitular o que aconteceu aqui. Primeiro: que horas são?

– Quinze para as nove – sussurrou Clara. – Ele vai chegar daqui a quinze minutos. E Ele nunca se atrasa.

– Não quero nem ver o que vai acontecer… – Cláudio resmungava

– Escutem – Walter bateu sua grande mão peluda sobre a mesinha de cerejeira falsa. Instantaneamente, Moema e Clara retiraram suas mãos dos joelhos dele, que bradou: – Só vamos chegar a um consenso se reconstituirmos os fatos. A memória clara, a memória clara, lembrem-se – sua voz tomou um tom quase professoral – é o caminho para se chegar à iluminação. Como Ele disse. Continuando: há uma hora atrás, nós arrumamos todas nossas coisas no quartinho e deixamos esta sala limpa. Que eu me lembre – aqui fez uma careta, olhos miúdos atrás dos óculos – nenhum de nós ficou sozinho um minuto, sempre tinha alguém pra fazer companhia…

– O princípio de desconfiança… – bufou Clara.

–…então – Walter pigarreou; eles se calaram, imóveis – nos sentamos, Cláudio foi até o interruptor e só deixou essa luz acesa. Foi aí que vimos – apontou enojado – isso aí.

– Mas isso é loucura, não pode ter aparecido aí de repente! – os seios de Clara pareciam explodir sob o suéter.

– O que contraria os princípios da lógica. – Walter balançou a cabeça três vezes, com convicção; Moema cruzou as pernas, entre pressurosa e desejosa: estava aflita para que a noite terminasse e ela pudesse ter aquela conversa a sós com Walter, que sugeriu: – A não ser que, de tão preocupados com o encontro, não tenhamos nos dado conta desse troço aí. Quem arrumou a mesa?

– Fui eu – empalideceu Moema. Todos a olharam como se quisessem mordê-la; ela levou as mãos ao pescoço, e coçou-se, a voz estrangulada: – Mas eu juro que não coloquei isso aí! Juro! Aliás, desde que eu entrei para nossa – fez uma pausa de sobrancelhas elevadas – Confraria, ouvindo os ensinamentos dEle, não toco numa COISA dessas! – e pôs-se a chorar.

– Ah, por favor, não chora – Cláudio tentou consolá-la; entre soluços altos, Moema refutou-o. Cláudio abriu os braços, soltando para todos os narizes presentes o odor forte que enxurrava de seus sovacos:

– Escutem, não adianta brigar, todos nos conhecemos e sabemos que não poderíamos trazer isso aqui, Ele não permitiria e nem nossas consciências! Temos é que achar um jeito de nos livrar dessa COISA antes que Ele chegue!

Todos miraram tensos para o objeto ao centro da mesa. Imoto, sombrio, parecia pulsar, feito um coração pequeno, aos quatro pares de olhos, a desgraça que se avizinhava. Talvez tenham se passado uns quatro minutos nessa contemplação, quando Clara cortou o silêncio com seu tom brando:

– Essa é a situação: – e procurou compor-se, alisando o suéter para baixo, alongando os olhos de Moema – estamos presos nessa cama, Ele vai chegar daqui a pouco, com certeza, revistar todos os aposentos, como sempre faz. Se escondermos isso, Ele achará. Se jogarmos pela janela, também. Se a gente colocar na roupa, então, vai ser pior. Queimar pode trazer suspeitas, acho que mais pesadas ainda: o cheiro, as cinzas… Aliás, isso aí, queimado, deve ter um cheiro muito peculiar. Só se…

Os outros três engoliram em seco, meio que adivinhando.

– É pequeno…

– Pois é… – disse Walter.

– E mole – opinou Moema.

– Mas nojento – mastigou Cláudio.

– Eu acho que é o único jeito – soprou Clara, e então seus seios pareceram voltar ao normal.

– Bem – pigarreou Walter – com água deve descer melhor. Vão buscar um jarro d’água, Cláudio, Clara!

Durante o breve espaço de tempo em que a dupla foi e voltou da cozinha, Moema puxou Walter para si e disse-lhe baixinho, os lábios roçando sua orelha:

– Preciso falar com você de qualquer jeito. Não agüento mais, isso está me subindo…

– Tudo bem, tudo bem – Walter pegou delicado na mão dela – isso tudo vai acabar, logo logo, a gente pode conversar, aí…

– E aí…

– E aí, gente, vamos começar? – chegou Cláudio, a jarra derramando a água meio barrenta da cozinha.

– Você parece que gostou da idéia – azedou Clara.

Walter pegou o objeto e, com regularidade, despedaçou-o. Estava prestes a detonar um processo irreversível de violação; assim, o ato necessitava uma certa carga ritualística. Com precisão de gestos e rigidez de movimentos – tal como Ele agia -, Walter impunha àquele objeto toda a força de suas mãos, que ainda assim exibiam algum despreparo para mexer com a massa um pouco dura, fria. Seus dedos iam macerando, rasgando, cortando e distribuindo aos outros integrantes da mesa-redonda, em partes estritamente iguais, fatias do tal objeto tão refutado e nojento a todos ali, que ainda não tinham coragem ou desprendimento suficiente para cair de boca e aguardavam, como convivas muito educados, que o anfitrião se pusesse a comer para que eles próprios o imitassem. Ao terminar o trabalho, Walter passou uma mão na outra, para limpar-se de alguns fiapos da coisa, olhou para a jarra de água da torneira, e para as porções daquilo inerte à frente de cada participante, e não pôde deixar de pensar na conhecida frase “tomai e comei, este é meu corpo” etc; só não a disse pois pensou que os outros achariam de extremo mau gosto: assim, somente esboçou um sorriso e um ar contrafeito e, olhando um a um, exortou-os:

– Devo lembrá-los de que só estamos fazendo isso para a não-dissolução desta nossa Confraria. Porque Ele nunca nos iria perdoar. Apesar de que, acho mesmo – puxou os óculos, que escorregavam para a ponta do nariz – que se Ele soubesse, em certo sentido, até ficaria orgulhoso. Mas não há mais tempo pra volteios filosóficos. Ele não se atrasará, vocês sabem. O jeito é engolir isso o mais rápido possível.

Satisfeito com a segurança de seu discurso, Walter enfiou um pouco daquilo na boca, mascou, com força, tomou um gole d’água e o engoliu.

A gororoba desceu-lhe o esôfago aos enguiços, uma enguia que se debatesse, elétrica, entre as cavernas da sua fé e sua lúcida resignação. Um troço cheio de arestas, plano e sebento, viscoso, difícil de unir-se ao seu corpo – um gosto e um cheiro embriagantes pelo que tinham de ausência. Enquanto a substância tentava se desfazer em seu suco gástrico, Walter perguntou-se, subitamente, se aquele ato, que ao mesmo tempo que afirmava destruía seu credo, corrompia-o e o salvava, se aquele objeto em seu interior não carregaria um veneno, porquanto desconhecido, e que isto os mataria de corpo então, ao invés de somente danificar o próprio espírito – caso lhe houvesse algum.

Mas exatamente no mesmo instante a gosma já entranhava-se em Moema, que soluçava ainda, e cada vez menos, ao mesmo tempo em que contava as mastigadas da amiga Clara, uma a uma, reproduzindo-lhe o movimento. Horrível, como um primeiro nojo que se tem, uma barata subindo pelos vãos da saia: porém, vendo Clara em idêntica situação, não deixava de sentir um certo consolo. Coisa que de imediato se esvaía, pois percebia os olhos da amiga hipnotizados pela figura de Walter, o qual seguia enfiando na boca grande os nacos do objeto, impassível. Consistência, consciência – estranhas palavras vindas de um rito anterior brotavam em seu cérebro, e enquanto perdia as linhas que a ligavam àquele ato concreto, lembrava-se de outro, tão anterior: a imitação da mãe, comendo de boca fechada, a força que ela fizera para não se afogar e ser direita. O que havia entre Walter e Clara? Nunca que a amiga lhe omitira um segredo, uma comparação, como se fossem partilhar de um brinquedo comum, em que ora ela assistia ora era assistida. Nenhuma das duas coisas ocorria agora, era como se estivesse apartada desse brinquedo, e tudo o que podia continuar fazendo era mastigar e engolir e beber água, como Clara, como Walter, e, infelizmente, como Cláudio, que arfava, ao seu lado.

Isso não era possível. Não podia ter acontecido, não com ele, nunca isto, jamais com essas pessoas. Sobretudo com aquela Clara. Se Ele o visse! Quando O procurara, meses atrás, sofria de uma insônia irreversível. Via homens dançando em torno, retorcidas figuras com os olhos elevados a um céu de tons arroxeados, o roxo cetim do caixão do avô, grande, maior deitado, e o algodão no nariz dele se parecia com o gosto dessa COISA, que engolia, fundo, e tornava a comer, machucando a garganta, quase sem água, para apreciar-lhe melhor o sabor. Cláudio suava e tinha até uma vontade de sorrir, terrível, pois devia contorná-la dos outros, aqueles outros que o separavam dEle, tão pequeno e gorducho, bola de bilhar rolando escada abaixo pelos interstícios de seu estômago, o mal-feito, o Mal grande, o erro, o desvio, a chibata e o grito que o reconduzia, bom que era, não vou mais fazer isso. Uma certeza o mordia por dentro; um coisa iria fazer sem dúvida: contar a Ele o acontecido. Isso o faria diferente dos outros aos olhos dEle, – embora, com desgosto, admitia de algum jeito estar indissoluvelmente ligado aos demais. Com este último pensamento tossiu, atraindo sobre si o olhar severo de Clara.

Espetáculo ridículo e degradante. Estúpida dispersão de tempo, refeiçãozinha grotesca, essa. Clara sentia vontade de arrombar o suéter e dançar por cima da mesa. Fosse uma doida varrida, que fosse: um pouco mais de caracterização idiota àquele cenário não faria mal. Caralho. Onde é que isso a levara – essa besteira, em que não acreditava e ponto final. Acreditar, esse era o problema: ela nunca tinha tido nenhuma fé nas palavras dEle, e agora era obrigada a fazer isso. E o pior é que ela não tinha culpa nenhuma; mas quem acreditaria? A água estava chegando ao fim, e felizmente a coisa também. Era engraçado espiar suas caras de nojo – embora ela mesma tivesse sido tomada de náusea, a princípio. [Agora, porém, que tudo chegava ao fim, pressentia uma espécie de tontura: um estranho tremor sacudindo-a, feito um palhaço de mola a escapar de uma caixa, ou uma colméia trabalhando, um carrilhão; azeitonas brotando. Um bebê formando-se. Uma estranha idéia de que neste ato paria-se por dentro. A comunhão se reunia num feto brilhante na barriga. Mas foi só impressão.] Abriu rapidamente os olhos e percebeu que a água havia acabado, e coisa toda fora consumida. Ato consumado.

Ficaram por muito tempo calados, os comensais. Não ousavam mirar-se: olhavam para o centro da mesa, como que para se certificarem de que aquilo já não existia. Ouvia-se aqui um ruído de trabalho gástrico; ali um suspiro; à esquerda um engolir em seco; à direita um curto bocejar: em tudo, um grande silêncio, e uma expectativa oca, esquecida. Alguma coisa havia acontecido e outra deixara de acontecer. Subitamente, ainda sem tirar os olhos do centro da mesa, Walter resmungou:

– Não foi tão ruim assim.

Ao que Clara disse, vagarosa, meio sorrindo:

– É verdade… no fim, já nem sentia nojo…

– Até que não deixou de ser gostoso – atalhou Moema: – não é? Aquela hora que o Cláudio trouxe um pouquinho de ketchup?

– Engraçado, não me lembro disso – resfolegou Cláudio.

– Eu me lembro da mostarda. É bom o gosto da mostarda nisso, não? – Walter sorriu, leve; espantado ao ouvir a própria voz, que lhe soou tão natural, feito um riacho.

– Quando Ele souber – suspirou, num selvagem saudosismo, o já molhadíssimo Cláudio. E nisso todos se deram conta da não-presença dEle ali ao encontro. Principalmente Walter, que rápido, tirou o relógio do bolso e declarou, recobrando a voz solene:

– São dez horas, amigos.

– Dez?

– Mas como pode ter passado tanto tempo?

– E Ele, onde está?

– Ele não virá mais – ciciou Walter, debruçando-se sobre a mesa, como se lhes revelasse um segredo que, no fundo, já desconfiavam; Moema quis apertá-lo neste instante, mas teve medo e observou de soslaio as feições sempre indecifráveis de Clara. Walter continuou: – Ele nunca se atrasa, vocês sabem.

– Isso é.

– Nunca.

– Parece um relógio – Clara quis declarar “um chato”.

– E quando se atrasa – Walter seguia, quase triunfante – é porque não vem, não veio, não virá. E vocês sabem o que quer dizer isso, não sabem?

Moema olhava ainda para Clara, que acompanhava a revelação intrigada [pensava, de relance, que, sim, ele era bonito, como Moema dizia. Interessante só reparar nisso agora] mas em seguida tornou a visão para Walter, que abria a boca para responder à própria pergunta quando interrompeu-o uma tossida e uma voz surpreendentemente sólida:

– Ele não comparece aos encontros quando sabe que lá não precisam dEle – e Cláudio dizia estas palavras sem gaguejar, mirando o escuro que os envolvia fora da mesa e dos pufes – não precisam dEle ali, então vai para onde O necessitam. Agora, por que…

– Ele não era necessário aqui? – Clara pegou, esperta, o pensamento de Cláudio. Mais um silêncio – que foi em seguida furado por chutes.

– Uma prova – tentou Moema.

– Uma traição – engasgou Cláudio.

– Uma fuga – jogou Clara.

– Uma gentileza – murmurou Walter. – Uma gentileza – repetiu. E depois de um suspiro, levantou-se, derrubando o pufe amarelo. – Acho que nisso encerra-se o encontro.

E todos, comum acordo, saíram do convívio.

Cláudio arrumou toda a pequena casa: acendeu as luzes, varreu, lavou, tirou impressões digitais. Clara e Moema jogavam uma água na pia; Walter acendeu um cigarro. A fumaça caiu-lhe no estômago como uma carícia. Uma hora depois, trancaram o local, reservado aos encontros, e, como o combinado, desprenderam-se fazendo o sinal. Conforme outro dos preceitos, os quatro confrades separaram-se, cada um tomando um rumo cardeal.

Madrugada, cada qual em sua cama dormia tranqüilo, feliz sono de fera bem alimentada. A exceção era Cláudio, que acordou às quatro da manhã, assustado, olhos esbugalhando-se para fora de um pesadelo que o fizera suar-se todo. Sentia medo, calor e um pouco de formigamento, pelo corpo inteiro, no entanto não conseguia recordar-se, sequer pensar, o que era aquele estado de ausência que lhe tomava a pele pelas bordas, aos beliscões. Um troço dentro o cutucava – o que era? Encolheu-se, os olhos ainda arreganhados. Não, não teria coragem de contar a Ele o que acontecera. E pôs-se miudamente a roer as unhas.

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Inverno, 1995.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 às 4:21 pm

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