Os infernos possíveis

contos de Ronaldo Bressane

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Zero

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Como foi mesmo o sonho? Tocava ao piano uma música que nunca tinha ouvido antes. Mas ele se lembrou de que não sabia tocar piano e ainda tentava se recordar do que teria acontecido, antes que visse estiletes entre as teclas e temesse cortar os dedos e acabasse acordado pelo despertador para o trabalho, quando o ônibus chega ¬– automático, paga o cobrador, que o fixa detrás de óculos escuros; e ele se acomoda a um penúltimo banco, como se com isso conquistasse o direito a uma ausência. Pelas janelas abertas – quente demais, insetos zunem –, há várias possibilidades no ônibus vazio; assim, resolve não ler a revista que comprou, para fazer passar mais rápido esta viagem em busca de mais um dia de trabalho. Suave, feito vidro moído, a música insidia-se na mente. O corpo dói; ele encolhe-se sobre sua pasta, o rosto apoiado no vidro frio. Um inseto. Passeiam pelos olhos prédios; automóveis; calçadas; pessoas. Um sujeito pergunta as horas a outro. E ele tem certa simpatia pela gente do asfalto.

Uma luz chapada é desenrolada pelo vento, feito imensa bandeira colorida, e ele se sente até próximo das pessoas diárias – as da banca de jornais, dos botecos, do açougue, atravessando a rua; amenas, fugazes, portáteis. Sente nelas mesmo uma louca esperança… enquanto o ônibus navega leve no fluxo e ele, liso, na inconsciência, um zumbido batendo asas nos ouvidos.

Numa parada, no meio do torpor percebe que se sentou no mesmo banco um homem vestido de preto, de óculos escuros e uma boina também negra. De tempos em tempos, o homem espreita-o discreto, parece. Incomodado, exila seu olhar na janela, à sua direita – e observa como, dia a dia, os carros empurram cada vez mais as pessoas para a calçada. À sua esquerda, o homem exala um odor ruim, de fuligem; familiar, no entanto… O sol rói a pele. Buzinas e o som morno do motor. O homem o perscruta? Ele se sente preso – no engarrafamento, no ônibus, no dia, dentro do corpo: encapsulado no próprio corpo. No entanto, está livre; todas as janelas, escancaradas. O ônibus se afunda, o cobrador abana-se: uma gota de suor vaza detrás dos óculos escuros – uma lágrima, talvez? E por quem? Ele tenta se distrair na revista; num lance, porém, decide descer um ponto antes. Ainda o ônibus ancorado; o homem dentro o examina, ainda, e mais. De lado, ele recorda, no outro, alguém que conhece… Vai deslizando lento, no mesmo sem-ritmo do ônibus. Curioso, relanceia o olhar: o homem não pára de vigiá-lo – e, agora, sorri. Pelo esgar dos lábios, ele lembra: parecia um ator que representou naquele filme, naquele filme perdido na memória, com essa boina e esses óculos, algo como um pintor cego que só pintava tetos, céus, infinitos… E agora ri, dentes grandes, gargalha, dentes arreganhando. Para quem? Talvez o pintor só existisse mesmo num sonho. E é só um instante: já se esqueceu do riso, pois se volta à boca do túnel que, todos os dias, ele cruza por baixo da linha férrea, para chegar ao trabalho, do outro lado. Ao trabalho.

Um buraco abafado de gente que esbarra e berra, ele tem de abaixar a cabeça e espadanar como peixe: na trombada, dezenas se comprimem, indo e voltando e crianças sujas mercadorias éter cola lâmpadas gosmentas que zumbem por paredes grafitadas e aleijados levantando as mãos e velhos homens-sanduíche comprando ouro ou emprestando dinheiro a crédito e estranhos ofícios e mijando em vãos e garotas seminuas de bonés empurrando papéis e filhos levando os pais paralíticos em carrinhos de supermercado enquanto a água dava nas canelas e camelôs de vozes agônicas oferecendo alarme-relógios que tocam e tocam e tocam e ecoam agudos pelos muros estritos do túnel que treme e trovoa as rodas de ferro dos vagões fechados que carregam gente a marchar sobre o teto em ritmo escuro, surdo, suando, úmido, quase derrubando sua pasta, ele, sem ar, a caminho do trabalho, ultrapassa o cardume grosso de mãos olhos bocas feito náufrago estilete, conseguindo aos poucos desembaralhar-se, pois pressente-se, como sempre, no meio de um filme, e imagina o que vê, talvez para se salvar, matéria de celulóide, porque a vida de todos os dias não pode ser real, essas pessoas como refugiados subaquáticos de filme de guerra, como assim?, quando a densa luz de fora numa porrada na cara banha-o no claror quente afinal do outro lado, assistindo a um bêbado molambo de chapéu-coco urrar:

Vocês têm que se enfiar aí! Todo mundo pra dentro! Pra dentro!

Como foi mesmo o sonho? Como não conseguia mais capturá-lo, feito uma canção? Como pode um sonho ir se entranhando assim, vertiginando-se no abismo da memória, até perder-se para sempre? Em que meada exata ele se desfaz? Não pode ser este preciso instante alguma lembrança antiga e devastada de um sonho muito diferente, criado por outra realidade?

O céu parece mais baixo: à frente, a grande fábrica de tijolos negros onde ele trabalha. A caminho do trabalho, ele segue sempre rápido, estremecendo em pensar como a gente do asfalto de todos os dias pode ser perigosa… Um som de piano enche os ares. Tira o crachá da pasta. A música circula sua cabeça, alto, muito alto, mas ele já não ouve. Já não imagina filmes mais. Pois surgiu, em algum lugar – de sua pasta? – um medo. Um medo frio como o vento, e coceira no corpo molhado: antes de chegar à porta escura do trabalho, o porteiro fecha seu caminho e lhe devolve o crachá. Nele, em 3 x 4, o homem de boina preta sorri. De onde está, ouve a canção do piano ser substituída pelo som dos alarme-relógios, alto, cada vez mais. Ainda segurando o crachá, ele faz um meio-giro timidamente e dá as costas ao porteiro. À entrada do túnel, está de novo o bêbado, apontando para baixo:

Pra dentro!

Quase com alegria – uma louca esperança –, ele obedece. Pressente que o túnel está diferente: lá dentro, sombras líquidas, brancas e escuras. Cansado – seu dia era longo, seu dia era curto – feito antes de morrer, ele se senta a um banco; esquecido: como se com isso conquistasse o direito a uma ausência. Que bom ter alguém para fazer meu trabalho hoje, pensa – enquanto, sutil, pousa sobre sua pasta, jogada meio de lado em cima do piano, um inseto verde, que parece uma folha. Verde claro o ventre, verde jade escuro a carapaça, uma antena quebrada. Passa nervoso as patas dianteiras uma na outra, enquanto balança a sua única antena boa: como se o observasse… Então, seus dedos se lembram.

O inseto voa.

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Verão, 1999.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:27 pm

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Em torno da mesa, os quatro acomodaram-se afoitamente nos pufes moles. Havia ainda um lugar vago. Mal se viam, tão escuro estava. Quando Cláudio acostumou-se à pequena claridade que vinha de um spot no alto pé-direito apontou, horrorizado, para o centro da mesa e perguntou, gaguejando:

– O-que-é-isso?

Walter tocou naquilo e recuou, a mão crispada, como que com nojo:

– Não pode ser isso que eu estou pensando.

– Aaargh! – fez Clara, ao realizar o que era.

– Aaargh! – fez Moema. Era muito amiga de Clara.

– Como isso veio parar aqui?

– Não-fui-eu! – silabou Cláudio, puxando com as pontas dos dedos a camisa empapada de suor, para todos os lados, como se se beliscasse para perceber que não era um sonho. Walter murmurou, engolindo meia ânsia de vômito:

– Não acredito que isso está aqui, justo hoje. Parece brincadeira. Quem de vocês trouxe?

Moema disse:

– Eu não fui! Vocês sabem como eu vim pra cá: sem malas, só a roupa do corpo. E ainda fui revistada, acho até que com um pouco de descortesia – e deu um apertão no joelho direito de Walter, por debaixo da mesa, sem que os outros notassem.

– É verdade – Clara reparou, aos berros; – e eu, como vim junto com ela, também não fui, também fui revistada, lembram? – e apertou o joelho esquerdo de Walter, que conteve um gemido.

– Cala a boca, Léo, não grita, podem ouvir – Moema pegou na mão da amiga, acalmando-a. Jogou os cabelos pra trás e o hálito de gengibre mascado sobre Walter: – Você e o Cláudio já estavam aqui antes, não pode ter sido um de vocês?

– Eu não estou agüentando olhar pra isso muito tempo – Cláudio continuava a se beliscar, o suor escorrendo por suas gordas faces – acho que vou ter que deixar a mesa…

– Ninguém sai! Ninguém pode sair dessa mesa até ele chegar, não foi o combinado?

– Puta que o pariu! Quando Ele ver isso… Ah, meu… – e o gemido de Cláudio foi cortado por Moema:

– Não continue! Nem comece o que ia falar! Deve ter sido você quem trouxe isso mesmo! – Clara esbraveja com Cláudio, que afundava a cabeça entre as diminutas mãos; os seios de Clara, quando ela se irritava, ficavam maiores do que pareciam: e era o que acontecia então – duros, pro alto, sob o suéter vermelho: – Eu quero saber o que o senhor Walter tem a dizer sobre isso aqui!

Os olhos fixos no objeto ao centro da mesa, Walter roía as unhas, já muito estragadas, algumas só no toco, e meneou a cabeça dum jeito que Moema achou muito charmoso, pois alguns fios se derramavam sobre sua testa longa dando-lhe um aspecto de poeta romântico. Ela subiu a mão pelo joelho direito de Walter, que para se dissuadir disso apressou-se: – Por favor, gente. Vamos manter a calma e recapitular o que aconteceu aqui. Primeiro: que horas são?

– Quinze para as nove – sussurrou Clara. – Ele vai chegar daqui a quinze minutos. E Ele nunca se atrasa.

– Não quero nem ver o que vai acontecer… – Cláudio resmungava

– Escutem – Walter bateu sua grande mão peluda sobre a mesinha de cerejeira falsa. Instantaneamente, Moema e Clara retiraram suas mãos dos joelhos dele, que bradou: – Só vamos chegar a um consenso se reconstituirmos os fatos. A memória clara, a memória clara, lembrem-se – sua voz tomou um tom quase professoral – é o caminho para se chegar à iluminação. Como Ele disse. Continuando: há uma hora atrás, nós arrumamos todas nossas coisas no quartinho e deixamos esta sala limpa. Que eu me lembre – aqui fez uma careta, olhos miúdos atrás dos óculos – nenhum de nós ficou sozinho um minuto, sempre tinha alguém pra fazer companhia…

– O princípio de desconfiança… – bufou Clara.

–…então – Walter pigarreou; eles se calaram, imóveis – nos sentamos, Cláudio foi até o interruptor e só deixou essa luz acesa. Foi aí que vimos – apontou enojado – isso aí.

– Mas isso é loucura, não pode ter aparecido aí de repente! – os seios de Clara pareciam explodir sob o suéter.

– O que contraria os princípios da lógica. – Walter balançou a cabeça três vezes, com convicção; Moema cruzou as pernas, entre pressurosa e desejosa: estava aflita para que a noite terminasse e ela pudesse ter aquela conversa a sós com Walter, que sugeriu: – A não ser que, de tão preocupados com o encontro, não tenhamos nos dado conta desse troço aí. Quem arrumou a mesa?

– Fui eu – empalideceu Moema. Todos a olharam como se quisessem mordê-la; ela levou as mãos ao pescoço, e coçou-se, a voz estrangulada: – Mas eu juro que não coloquei isso aí! Juro! Aliás, desde que eu entrei para nossa – fez uma pausa de sobrancelhas elevadas – Confraria, ouvindo os ensinamentos dEle, não toco numa COISA dessas! – e pôs-se a chorar.

– Ah, por favor, não chora – Cláudio tentou consolá-la; entre soluços altos, Moema refutou-o. Cláudio abriu os braços, soltando para todos os narizes presentes o odor forte que enxurrava de seus sovacos:

– Escutem, não adianta brigar, todos nos conhecemos e sabemos que não poderíamos trazer isso aqui, Ele não permitiria e nem nossas consciências! Temos é que achar um jeito de nos livrar dessa COISA antes que Ele chegue!

Todos miraram tensos para o objeto ao centro da mesa. Imoto, sombrio, parecia pulsar, feito um coração pequeno, aos quatro pares de olhos, a desgraça que se avizinhava. Talvez tenham se passado uns quatro minutos nessa contemplação, quando Clara cortou o silêncio com seu tom brando:

– Essa é a situação: – e procurou compor-se, alisando o suéter para baixo, alongando os olhos de Moema – estamos presos nessa cama, Ele vai chegar daqui a pouco, com certeza, revistar todos os aposentos, como sempre faz. Se escondermos isso, Ele achará. Se jogarmos pela janela, também. Se a gente colocar na roupa, então, vai ser pior. Queimar pode trazer suspeitas, acho que mais pesadas ainda: o cheiro, as cinzas… Aliás, isso aí, queimado, deve ter um cheiro muito peculiar. Só se…

Os outros três engoliram em seco, meio que adivinhando.

– É pequeno…

– Pois é… – disse Walter.

– E mole – opinou Moema.

– Mas nojento – mastigou Cláudio.

– Eu acho que é o único jeito – soprou Clara, e então seus seios pareceram voltar ao normal.

– Bem – pigarreou Walter – com água deve descer melhor. Vão buscar um jarro d’água, Cláudio, Clara!

Durante o breve espaço de tempo em que a dupla foi e voltou da cozinha, Moema puxou Walter para si e disse-lhe baixinho, os lábios roçando sua orelha:

– Preciso falar com você de qualquer jeito. Não agüento mais, isso está me subindo…

– Tudo bem, tudo bem – Walter pegou delicado na mão dela – isso tudo vai acabar, logo logo, a gente pode conversar, aí…

– E aí…

– E aí, gente, vamos começar? – chegou Cláudio, a jarra derramando a água meio barrenta da cozinha.

– Você parece que gostou da idéia – azedou Clara.

Walter pegou o objeto e, com regularidade, despedaçou-o. Estava prestes a detonar um processo irreversível de violação; assim, o ato necessitava uma certa carga ritualística. Com precisão de gestos e rigidez de movimentos – tal como Ele agia -, Walter impunha àquele objeto toda a força de suas mãos, que ainda assim exibiam algum despreparo para mexer com a massa um pouco dura, fria. Seus dedos iam macerando, rasgando, cortando e distribuindo aos outros integrantes da mesa-redonda, em partes estritamente iguais, fatias do tal objeto tão refutado e nojento a todos ali, que ainda não tinham coragem ou desprendimento suficiente para cair de boca e aguardavam, como convivas muito educados, que o anfitrião se pusesse a comer para que eles próprios o imitassem. Ao terminar o trabalho, Walter passou uma mão na outra, para limpar-se de alguns fiapos da coisa, olhou para a jarra de água da torneira, e para as porções daquilo inerte à frente de cada participante, e não pôde deixar de pensar na conhecida frase “tomai e comei, este é meu corpo” etc; só não a disse pois pensou que os outros achariam de extremo mau gosto: assim, somente esboçou um sorriso e um ar contrafeito e, olhando um a um, exortou-os:

– Devo lembrá-los de que só estamos fazendo isso para a não-dissolução desta nossa Confraria. Porque Ele nunca nos iria perdoar. Apesar de que, acho mesmo – puxou os óculos, que escorregavam para a ponta do nariz – que se Ele soubesse, em certo sentido, até ficaria orgulhoso. Mas não há mais tempo pra volteios filosóficos. Ele não se atrasará, vocês sabem. O jeito é engolir isso o mais rápido possível.

Satisfeito com a segurança de seu discurso, Walter enfiou um pouco daquilo na boca, mascou, com força, tomou um gole d’água e o engoliu.

A gororoba desceu-lhe o esôfago aos enguiços, uma enguia que se debatesse, elétrica, entre as cavernas da sua fé e sua lúcida resignação. Um troço cheio de arestas, plano e sebento, viscoso, difícil de unir-se ao seu corpo – um gosto e um cheiro embriagantes pelo que tinham de ausência. Enquanto a substância tentava se desfazer em seu suco gástrico, Walter perguntou-se, subitamente, se aquele ato, que ao mesmo tempo que afirmava destruía seu credo, corrompia-o e o salvava, se aquele objeto em seu interior não carregaria um veneno, porquanto desconhecido, e que isto os mataria de corpo então, ao invés de somente danificar o próprio espírito – caso lhe houvesse algum.

Mas exatamente no mesmo instante a gosma já entranhava-se em Moema, que soluçava ainda, e cada vez menos, ao mesmo tempo em que contava as mastigadas da amiga Clara, uma a uma, reproduzindo-lhe o movimento. Horrível, como um primeiro nojo que se tem, uma barata subindo pelos vãos da saia: porém, vendo Clara em idêntica situação, não deixava de sentir um certo consolo. Coisa que de imediato se esvaía, pois percebia os olhos da amiga hipnotizados pela figura de Walter, o qual seguia enfiando na boca grande os nacos do objeto, impassível. Consistência, consciência – estranhas palavras vindas de um rito anterior brotavam em seu cérebro, e enquanto perdia as linhas que a ligavam àquele ato concreto, lembrava-se de outro, tão anterior: a imitação da mãe, comendo de boca fechada, a força que ela fizera para não se afogar e ser direita. O que havia entre Walter e Clara? Nunca que a amiga lhe omitira um segredo, uma comparação, como se fossem partilhar de um brinquedo comum, em que ora ela assistia ora era assistida. Nenhuma das duas coisas ocorria agora, era como se estivesse apartada desse brinquedo, e tudo o que podia continuar fazendo era mastigar e engolir e beber água, como Clara, como Walter, e, infelizmente, como Cláudio, que arfava, ao seu lado.

Isso não era possível. Não podia ter acontecido, não com ele, nunca isto, jamais com essas pessoas. Sobretudo com aquela Clara. Se Ele o visse! Quando O procurara, meses atrás, sofria de uma insônia irreversível. Via homens dançando em torno, retorcidas figuras com os olhos elevados a um céu de tons arroxeados, o roxo cetim do caixão do avô, grande, maior deitado, e o algodão no nariz dele se parecia com o gosto dessa COISA, que engolia, fundo, e tornava a comer, machucando a garganta, quase sem água, para apreciar-lhe melhor o sabor. Cláudio suava e tinha até uma vontade de sorrir, terrível, pois devia contorná-la dos outros, aqueles outros que o separavam dEle, tão pequeno e gorducho, bola de bilhar rolando escada abaixo pelos interstícios de seu estômago, o mal-feito, o Mal grande, o erro, o desvio, a chibata e o grito que o reconduzia, bom que era, não vou mais fazer isso. Uma certeza o mordia por dentro; um coisa iria fazer sem dúvida: contar a Ele o acontecido. Isso o faria diferente dos outros aos olhos dEle, – embora, com desgosto, admitia de algum jeito estar indissoluvelmente ligado aos demais. Com este último pensamento tossiu, atraindo sobre si o olhar severo de Clara.

Espetáculo ridículo e degradante. Estúpida dispersão de tempo, refeiçãozinha grotesca, essa. Clara sentia vontade de arrombar o suéter e dançar por cima da mesa. Fosse uma doida varrida, que fosse: um pouco mais de caracterização idiota àquele cenário não faria mal. Caralho. Onde é que isso a levara – essa besteira, em que não acreditava e ponto final. Acreditar, esse era o problema: ela nunca tinha tido nenhuma fé nas palavras dEle, e agora era obrigada a fazer isso. E o pior é que ela não tinha culpa nenhuma; mas quem acreditaria? A água estava chegando ao fim, e felizmente a coisa também. Era engraçado espiar suas caras de nojo – embora ela mesma tivesse sido tomada de náusea, a princípio. [Agora, porém, que tudo chegava ao fim, pressentia uma espécie de tontura: um estranho tremor sacudindo-a, feito um palhaço de mola a escapar de uma caixa, ou uma colméia trabalhando, um carrilhão; azeitonas brotando. Um bebê formando-se. Uma estranha idéia de que neste ato paria-se por dentro. A comunhão se reunia num feto brilhante na barriga. Mas foi só impressão.] Abriu rapidamente os olhos e percebeu que a água havia acabado, e coisa toda fora consumida. Ato consumado.

Ficaram por muito tempo calados, os comensais. Não ousavam mirar-se: olhavam para o centro da mesa, como que para se certificarem de que aquilo já não existia. Ouvia-se aqui um ruído de trabalho gástrico; ali um suspiro; à esquerda um engolir em seco; à direita um curto bocejar: em tudo, um grande silêncio, e uma expectativa oca, esquecida. Alguma coisa havia acontecido e outra deixara de acontecer. Subitamente, ainda sem tirar os olhos do centro da mesa, Walter resmungou:

– Não foi tão ruim assim.

Ao que Clara disse, vagarosa, meio sorrindo:

– É verdade… no fim, já nem sentia nojo…

– Até que não deixou de ser gostoso – atalhou Moema: – não é? Aquela hora que o Cláudio trouxe um pouquinho de ketchup?

– Engraçado, não me lembro disso – resfolegou Cláudio.

– Eu me lembro da mostarda. É bom o gosto da mostarda nisso, não? – Walter sorriu, leve; espantado ao ouvir a própria voz, que lhe soou tão natural, feito um riacho.

– Quando Ele souber – suspirou, num selvagem saudosismo, o já molhadíssimo Cláudio. E nisso todos se deram conta da não-presença dEle ali ao encontro. Principalmente Walter, que rápido, tirou o relógio do bolso e declarou, recobrando a voz solene:

– São dez horas, amigos.

– Dez?

– Mas como pode ter passado tanto tempo?

– E Ele, onde está?

– Ele não virá mais – ciciou Walter, debruçando-se sobre a mesa, como se lhes revelasse um segredo que, no fundo, já desconfiavam; Moema quis apertá-lo neste instante, mas teve medo e observou de soslaio as feições sempre indecifráveis de Clara. Walter continuou: – Ele nunca se atrasa, vocês sabem.

– Isso é.

– Nunca.

– Parece um relógio – Clara quis declarar “um chato”.

– E quando se atrasa – Walter seguia, quase triunfante – é porque não vem, não veio, não virá. E vocês sabem o que quer dizer isso, não sabem?

Moema olhava ainda para Clara, que acompanhava a revelação intrigada [pensava, de relance, que, sim, ele era bonito, como Moema dizia. Interessante só reparar nisso agora] mas em seguida tornou a visão para Walter, que abria a boca para responder à própria pergunta quando interrompeu-o uma tossida e uma voz surpreendentemente sólida:

– Ele não comparece aos encontros quando sabe que lá não precisam dEle – e Cláudio dizia estas palavras sem gaguejar, mirando o escuro que os envolvia fora da mesa e dos pufes – não precisam dEle ali, então vai para onde O necessitam. Agora, por que…

– Ele não era necessário aqui? – Clara pegou, esperta, o pensamento de Cláudio. Mais um silêncio – que foi em seguida furado por chutes.

– Uma prova – tentou Moema.

– Uma traição – engasgou Cláudio.

– Uma fuga – jogou Clara.

– Uma gentileza – murmurou Walter. – Uma gentileza – repetiu. E depois de um suspiro, levantou-se, derrubando o pufe amarelo. – Acho que nisso encerra-se o encontro.

E todos, comum acordo, saíram do convívio.

Cláudio arrumou toda a pequena casa: acendeu as luzes, varreu, lavou, tirou impressões digitais. Clara e Moema jogavam uma água na pia; Walter acendeu um cigarro. A fumaça caiu-lhe no estômago como uma carícia. Uma hora depois, trancaram o local, reservado aos encontros, e, como o combinado, desprenderam-se fazendo o sinal. Conforme outro dos preceitos, os quatro confrades separaram-se, cada um tomando um rumo cardeal.

Madrugada, cada qual em sua cama dormia tranqüilo, feliz sono de fera bem alimentada. A exceção era Cláudio, que acordou às quatro da manhã, assustado, olhos esbugalhando-se para fora de um pesadelo que o fizera suar-se todo. Sentia medo, calor e um pouco de formigamento, pelo corpo inteiro, no entanto não conseguia recordar-se, sequer pensar, o que era aquele estado de ausência que lhe tomava a pele pelas bordas, aos beliscões. Um troço dentro o cutucava – o que era? Encolheu-se, os olhos ainda arreganhados. Não, não teria coragem de contar a Ele o que acontecera. E pôs-se miudamente a roer as unhas.

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Inverno, 1995.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:21 pm

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Weboi

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Ó solidão de boi no campo!
[Drummond]

Tem boi no pasto. No pasto tem boi. Boi tem no pasto. Tem no pasto boi. Boi no pasto tem. Dia após dia, meses após meses, passados quase dois anos, o enigma não saía da cabeça: variava pra achar sentido naquelas palavras que se tão fundo fixaram na mente a ponto de temer esbarrar nelas, gigantescas, pelo corredor que ia do quarto à cozinha. Essa a frase: famous last words da velha, seu testamento lingüístico, lavrado em caixa alta no pseudoleito de morte. Camila esforçava-se por fixar o que afinal quis comunicar a vó, naquele tão imenso momento. Tem boi no pasto.

Mas, antes disso: aproxime-se, querida. Sim, vó. Preste atenção, minha neta. Tem boi no pasto. E aí, o cursor mudo. Silêncio de silício: sim, porque a vó morrera-lhe via internet. Até aquele chatting nonsense surgir em sua tela, havia anos não se noticiavam; desavenças de família criaram distâncias – coisas de que nem se lembrava mais, desafetos e segredos engasgados. E a ironia: vizinhas de bairro, sequer na padaria jamais se esbarraram, na hora fatídica do leite B matinal. Da vó, Camila sabia por conhecidos que saía de casa, dava seus passeios de totó cagar. Depois ouviu que o bicho de estimação morrera atropelado – mas a vó seguia zanzando pelas esquinas arrastando uma coleira. Tempos atrás, quando ainda dirigia, vez em quando via uma velhinha atravessando a avenida e a culpa lhe tremia as mãos no volante – mas não era ela, a vó Sabrina: era sempre uma vó de outro alguém, de outro ninguém. Sabia também que a vó era vista rondando as ruas do bairro soltando em voz alta discursos ininteligíveis sobre estética, filosofia e política, e que também às vezes gritava que a Interpol estava em seus tornozelos. Por causa da vó, de erradia foi se enfiando numa pessoa arredia – cortara festas, locadora e visitas, e até mesmo leite de manhã – o supermercado lhe mandava um boy com caixas de leite longa-vida. Longa vida, arte breve. Estava certa de que viveria muito. E mais certa além de que a vó não falharia nunca, feito sequóia. Não queria cruzar com ela, e também não queria acusar-se desse pânico total absurdo. Entranhada, estranharam.

Mas os outros? Pro inferno.

O telefone teimava em tocar, e um amigo vinha no calo – engraçado, Camila, outro dia fui no Fran’s da Fradique e vi uma senhora super bonita, velha mas linda, de cabelos compridos brancos, e ela falava sozinha, sempre sorrindo, assuntos intelectuais, mas totalmente nonsense, falava muito alto, tomando um chá, as pessoas iam embora, sem graça, acho que ela deve morar na rua… mas por que eu tou falando isso? ah, é que aí eu lembrei de você, alguma coisa nela me fazia lembrar seu rosto… Comprou uma secretária eletrônica, vendeu o carro, passou a trabalhar só em casa: historiadora, tudo se dispunha via web, mandava seus textos pela rede e o pagamento era creditado diretamente na conta bancária, movimentada à distância – água, luz, telefone, condomínio, provedor, tudo. Felizmente, boa no seu fazer, nunca faltavam pedidos de trabalhos: de certa forma, sua reclusão até lhe perfumava de charme, os jornais e as revistas a requisitavam ainda mais. Quantos anos tinha? A idade abolira: convicta de nunca passar desta pra pior, Camila continuava sempre a mesma – e a outra que tomara seu lugar: Camila, por que você nunca me telefona? Camila, por que não vamos ao cinema? Camila, por que você não atende ao interfone? Camila, por que você me abandonou assim sem mais nem menos?

Não conseguia mais falar com os amigos – um tédio total: qualquer papo era déjà-vu. Comia pizzas. Comia comida chinesa. Um desespero foi quando o maldito PC deu pau, teve de chamar a assistência técnica; apareceu um sujeito de azul, a senhora mora aqui sozinha? Mastigando voraz o chiclete – medo de bafo, comprava caixas e caixas –, tremeu: meu marido tá trabalhando. Marido? Uma vez pensara em casar – juntar os trapos com o tal cara, mudar de aparamento, e talvez, um filho. Ah – onde tinha parado essa idéia? Vocês nessa casa gostam mesmo de pizza, hein? As caixas de delivery espalhadas por todo canto, até no banheiro tinha. Tomou banho hoje? Ontem? Que data era aquela mesmo? Terminara um texto sobre a Revolução Industrial contudo o nome do cara que um dia visitara suas noites não lhe convinha à cabeça. Assina a nota? O sujeito lambia de olhos suas pernas, subia pelas coxas até encontrar, por trás do peignoir, a calcinha manhada de sangue – precisava comprar absorventes. Mesmo? Obrigado, jogou o técnico com nojo, junto com a nota fiscal. Tem boi no pasto.

Tem boi no pasto.

Na verdade só havia realizado a morte da vó por um telegrama frio de sua mãe. Na cabeça a charada, telefonara: ela foi encontrada no cybercafé de uma livraria, em cima do computador, agarrada no mouse, que até quebrou, o gerente ainda quis me cobrar porque ela tinha derrubado chá no teclado e quem é que paga a conta? a trouxa aqui, sempre, mas foi o que tinha que ser, coitada, ataque cardíaco, muito velha e cabeçuda, não tomava remédio nem se cuidava, o que é que se vai fazer, você não precisa vir no enterro se não quiser, mas eu queria muito te ver, você precisa ver sua mãe – e dá-lhe soluços, a velha lenga-lenga xaroposa de sempre; preferira desligar a perguntar sobre o enigmático enunciado. Então aquilo tinha sido mesmo a derradeira tolice sem sentido de sua vó. Mas por que justo com ela, Camila? Nunca nem sonhara que vó Sabrina entendesse de computador – e agora tinha que imaginar a velha estertorando no mouse como quem se apega à última tábua, ao rosário infinito, à mão confortante. Tem boi no pasto! Cada um ganha o Rosebud que merece. Segura essa: mais uma sacanagem da louca filha da puta. Eu aqui, bem. Na minha. E isso.

Precisava achar. Precisava cortar as asas daquela esfinge. Tem boi no pasto. Sobre a teia de bois deslizou: investiu-se do espírito de Champollion, inverteu, trocou, anagramatizou, contou as palavras, os caracteres, deu a cada letra um número, somou, subtraiu, dividiu, e multiplicou o nada. Procurou homepages sobre pecuária, sobre a psicanálise dos sonhos com animais, visitou sites de artes plásticas cujas palavras-chave estivessem no âmbito do bovino, leu poemas árcades, viu pinturas ruprestes em velhos livros, pesquisou o ciclo do gado do Brasil, acessou CDs que cantavam antiquados rocks rurais, música sertaneja, caipira e country. E, se do avesso não vinha, nem pelo interno: recorrer à própria árvore genealógica foi uma coisa logo descartada porque não queria conversar com a mãe, e, além do mais, memória é um troço que dá uma puta dor de cabeça e em casa não existia aspirina. Como a vó, horrorizava remédios e médicos. Que mais semelhanças haveria? Quem era Sabrina? Não era vovó de carochinhas, amante de lobo mau, velha sábia, cozinheira esmerada, matriarca extremada de amores, nem mesmo cavaleira de vassoura. Era o centro de um donut. Era uma impressora sem tinta. Era uma janela fechada com cadeado cuja senha esquecera. Tem boi no pasto, tem boi no pasto, tem boi no pasto: Camila ainda quis acreditar ser só uma piada, sem rima no real. Uma grande piada, de humor negro, de mau gosto, essa assombração. Não, não devia morder essa isca: não queria significar nada.

Abriu outro pacote de chicletes, enfiou logo três na boca – mordeu, mastigou, fez bola, a bola estourou grudando na cara toda. Tentou rir da vó, tentou esquecê-la enquanto, por exemplo, jogava paciência no PC pela 524ª vez seguida. Mas sempre acabava voltando um passo para trás deste penhasco: e caiu.
O mouse que a avó agarrara na morte era ela mesma – estaria até o fim presa nessa armadilha. Entanto, desesperar jamais. Lucidez, esse o seu predileto vinho; e cada menos que ela rejuvenescia, sua crença crescia, geométrica, bissetriz. Tudo o que não queria era ser como ela. A velha doida assustadora, faminta por vexames. Camila não. Sua paciência, seu inteligível e sua vigília careciam de fronteira. Pouco a pouco, enfim compenetrada e detida, foi dispensando pedidos de textos, de biografias, de artigos, de consultorias. E a inacessível grande historiadora ia lentamente sendo inacessada; o que nem discutiu, nem redargüiu, nem reclamou. Agora que agora é nada, só importava o mistério maior. Em busca do sentido perdido, desencanou.

A catástrofe caiu de noite, entretanto, sem telegrama dessa vez, em setenta punhais: um blecaute por toda a cidade. À sua frente, o computador ficou cego, a secretária eletrônica calou, a TV fugiu ao controle, o microondas esfriou, a luz velou. Logo veio um medo – aquele pânico quando andava de carro pela cidade temendo ver velhinhas de cabelos longos e brancos atravessando a rua. Soluçando, Camila atirou-se no fofo carpete da sala, escondendo o rosto no chão – tapou as orelhas para não escutar a cantilena: tem boi no pasto, no pasto tem boi, boi tem no pasto, tem no pasto boi, boi no pasto tem – e daí, insidioso e fofo, veio um silêncio; primeiro de fora, depois, de dentro. Um silêncio bom, delicioso, de travesseiro fresco e novo, uma dobra do tecido sugado pelos dentes. E ela começou a gostar, lá no fundo das caraminholas – uma liberdade. Assim sim, desse jeito, tranqüila, total, teria mais tempo. Todo o tempo do mundo. Ou o que quer que tivesse esse nome de mundo demarcado numa coisa, numa substância, num corpo. Porque, daqui pra frente, para ela só haveria na face da Terra um imenso e longínquo pasto, liso como uma pele, e nele, um tranqüilo boi ruminando sem parar sua consciência. Sua consciência de boi. Ela seria um boi. Solitário e bom, desgarrado num campo perene possuído por todas cores do verde, essencial, mascando capim-gordura de bem leve, com pesaroso amor, vagado, mas de tão sozinho cheio, que abriria asas. Nas quatro patas sólido, continuado presente, comendo e dormindo e sonhando e cagando e andando verde, parado, penso no tempo, feliz, simples, pensando pensamentos de boi – de boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta.

De vez em quando, espantava uma mosca com a cauda.

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Inverno, 1997.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:17 pm

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Universidade

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Meu nome é Cleudival, precisamente por ser filho de Cleuda e Edival; este, filho de Edileuza e Válter, que são, por suas vezes, nascidos de Edílson e Neuza e Tereza e Valdir, que teria tido como pais Dirce e Valdomiro, o qual, lendejam, fora integrante do bando de Lampião. Sou, da cabeça aos pés, nordestino; portanto um ordinário de primeira nesta cidade de São Paulo, aquele santo que abriu os olhos quando Deus cegou-os. Semelhante a seu trajeto é este meu trabalho: contar aqui um trecho de minha história, a dos últimos dias, pra que no meu íntimo ela se apague definitivamente. Se fosse católico, se acreditasse em Deus, diria que se trata de uma confissão, seguida de expurgo e perdão através da hóstia e do vinho. Meu problema é de outra ordem: não pequei, e ainda assim sinto culpa; meu nome é limpo na praça – talvez seja a praça, suja.

Começo lembrando-me da dor em meu braço esquerdo, por ter dormido em cima dele, mal-ajeitado num pequeno divã no quarto de hospital em que minha mãe se encontra. O braço formigando, o quarto tomado de claridade ensurdecedora, ruídos eletrônicos como pirilampos cegos, coloco meus óculos e olho para minha mãe que se afunila entre lençóis enormes e tubos e dutos e cateteres e aparelhos.

Parece dormir: nunca sei quando inconsciente, em coma, desmaiada ou prestes a despertar – são muitos os humores dos que têm os olhos abertos para o outro lado. Entra uma enfermeira, a qual, logo após cumprimentar-me com um leve gesto de cabeça, prepara cuidadosamente uma injeção e aplica-a no campo já tão minado por agulhas quebradas e pontos pretos que é o braço da mãe. Ela nem se mexe. Calço os sapatos, espio o relógio: atrasado. Pego cuidoso minha maleta e saio, sem olhar para atrás, para a manhã que se ensolara como um grito.

Zarpo desembestado até a USP: pela Marginal Pinheiros, de dentro de meu carrinho, presente materno, buzino, xingo, cuspo, bato no painel; sou um vaqueiro indomável, mais rápido e ágil que qualquer um. Pequeno, franzino, baixo, de finas carnes e ossos, ao volante me agiganto, meto meu veículo onde couber, e escapo do trânsito. Sim, sei dessas compensações materialistas: sei demais de mim para mentir. Mas sou cúmplice em várias omissões. Como a em que contribuirei, na aula próxima do professor Alfredo Bosi. Tratam-se de alguns ensaios de final de semestre, que fiz para ajudar uns amigos do segundo ano de Letras: um soneto de Bandeira, uma glosa de Gregório, um estrambote de Drummond – cada poema um texto de dez páginas de análise interpretativa, cada texto um amigo que escapa da recuperação. Querem me pagar por isso; não deixo. Às vezes me pergunto onde é que termina a generosidade e onde começa a soberba. Disfarço bem; sofro melhor ainda.

Dissimuladamente, distribuo os trabalhos a meus colegas, que parecem bastante aliviados por minha presença; a aula finda, sou uma ilha cercada de tapinhas nas costas por todos os lados, massa de sorrisos que me constrangem, me envaidecem e me enojam. Um, mais solícito, pergunta pela saúde de Dona Cleuda.

– O câncer entrou em metástase – respondo, grave e um pouco envergonhado por uma aparente fraqueza. Tento um sorriso: – é a carne, meu amigo, é tão-somente a carne…

Ele me olha sem entender: é mais um estranho, e, para nosso mútuo bem, me distancio, numa vaga careta. Desço as escadas até ali onde o mato é mais alto, e chamo: – Teobaldo! Ô menino, onde é que se meteu? Venha cá, vou-lhe fazer uma surpresa, bichinho! – E do meio de umas flores amarelas vem correndo um gato miúdo, malhadiço, a quem dei este nome; tiro da maleta um pacote com sobras de comida que colhi na lanchonete do hospital, arroz com batatas murchas. Ele mia, e começa a comer. E de repente Teobaldo não é mais o único: proliferam-se vários clones dele, um mais feio e sujo que o outro, embora às vezes apareça um siamês ou um angorá que ninguém mais quer ter em casa e larga por aí, pelo campus – a universidade está infestada desses esfaimados indesejados.

Largo-os com a comida, e saio para uma volta, sozinho, estranho entre meus colegas. Sim, porque vindo de onde vim, expulso do Nordeste – que nunca foi o Éden – e dando cabeçada em tudo quanto é esquina desta cidade, jamais posso me esquecer disso, a condição de estrangeiro, que não creio com ressentimento, mas, aliás, muito natural. Irreal é o fato de minha estranheza ter corroído até o âmago minha própria família, até meu próprio ser. Lembro-me subitamente de minha mãe horizontalizada e me arrepio ante a natureza do que virá.

– Quantas vezes já me debati entre a noção do que é certo e o que é errado, até chegar à conclusão de que somente existem possibilidades, realidades, ilusões – é o que tento explicar a Hermes, um de meus melhores amigos, senão o único, na USP aluno de Italiano. Ele acaba de me relatar um sonho que teve, em que mordia furiosamente o braço da irmã, Lisle. Sansei, magro, broche do PSTU na camiseta rasgada, quase um adolescente, Hermes sorri amarelo enquanto desajeitado limpa o óculos na camisa de flanela e ouve-me dizer que, para além do simbolismo óbvio, não sei interpretar este sonho, no que ele teria de mais profundamente revelador. Freud não é tudo na vida, e Lisle é muito bonita – e devo encontrá-la mais tarde. Hermes espia em volta, procurando pelas estantes um livro qualquer – estamos na Edusp, livraria em que trabalho, como vendedor, no horário entre as aulas matutinas e as noturnas – e me fala que Lisle o procurou com dificuldades sobre um livro do Arrigucci, e ele não soube conversar com ela pois o sonho ainda estava presente em suas retinas. Não sei o que dizer, pois ontem combinara com Lisle um encontro, em segredo, como me pedira. Hermes confia plenamente em mim, e eu temo traí-lo, ou pelo menos que venha a saber. Mas o que não poderia saber? E o que seria uma traição, segundo minha ética particular?

Sou de todos e não sou de ninguém – é em que acredito. Assim, passa por mim a vida, em seus inúmeros enganos e diminutos prazeres, e me espraio em uns poucos minutos, me distraindo do resto; e me dou todo, negando-me qualquer redenção que disto advenha. É desta maneira, pois, que me sinto ao chegar, muito humilde, até a secretaria do Crusp, o conjunto residencial dentro do campus:

– Cleudival da Silva, baiano, 26 anos, residente à rua Dezesseis de Novembro, número 66, estudante de Letras, curso de Russo, trabalho na Edusp, venho solicitar uma vaga num apartamento, por não dispor de condições de me deslocar de onde moro até aqui, todos os dias. Não, não tenho condução própria. Tenho três irmãs; a mais velha, de 23 anos, tem seis filhos. Meu pai, Edival da Silva, morreu, eu tinha seis anos. Conosco mora o padrasto, de sessenta anos, inválido. Minha mãe?

Respondia sem pestanejar às perguntas da senhora da secretaria, mentindo aqui, ali simplesmente falando a verdade – a infância difícil, a morte do pai, a miséria, a fome, a força da minha mãe. Tudo verdade, tudo doído, minha cara é testemunho. No entanto eu precisava de um quarto meu, necessidade física mesmo, e não podia falar do automóvel, e as supostas irmãs desempregadas sobrevivendo às custas de meu pequeno salário na livraria eram ótimos fatores. A minha mãe? Olhava de baixo, mais de baixo que eu já sou, mexendo insistentemente nos óculos redondos, olhava de lado, tímido voltando as mãos suadas ao bolso; e dos documentos que não tenho, ela me responde com um “tudo bem”: está comovida, sim, com minha penosa situação, é uma alma boa, ganho-a aos poucos, como quando interrompo a descrição de minha errança pelo sertão do Nordeste para indagá-la do braço, que está enfaixado e imobilizado – não é nada, responde, só uma luxação, sabe como é, velhos; sorri, e faço que tento sorrir, não conseguindo pela terrível timidez que aparento ou pelo mero complexo de inferioridade; muito simpática, a senhora, falo, me lembra a minha mãe. Sim? Sua mãe? E o que faz sua mãe?

– A minha mãe – e levo a mão ao óculos, amasso nervoso as sobrancelhas, fingindo conter um choro que quer vir; é um truque melhor que meramente chorar: a lágrima tem de sair rápida, e ser enxugada mais rápido ainda, e a voz embargar e desembargar numa questão de segundos. – Mãinha é falecida.

E passo mais alguns minutos falando da grandeza extraordinária dessa mulher, de como fugiu da seca com os filhos sem conhecer absolutamente ninguém, nem parente nem amigo, e conseguiu erguer-se sozinha, com a força de suas mãos costurando, lavando, passando, cozinhando, sol a sol segunda a segunda, tendo como única companhia a voz jovial de Silvio Santos – nesse ponto a senhora pôs-se a soltar lágrimas silenciosas – e muito depois dos filhos estudados, o mais velho entrando na faculdade, é que se deu ao luxo de casar-se novamente, só para ter uma companhia, uma de verdade, mesmo assim maldizia-se por ter feito a escolha errada, pois o padrasto, embora boa pessoa, era um alcóolatra irrecuperável, coisa que a entristecia e a fez ficar doente, nosso dinheirinho guardado perdendo-se no abismo das contas da farmácia, e aí, há dois dias, em casa, sem mais nenhum alento, o fim; após, somente o enterro, num cemitério pobre, numa cova rasa, sem número.

– Vá, meu filho – a senhora gaguejava, assoando o nariz, limpando os óculos, o rosto vermelho, a boca úmida – vá, que eu vou ver o que posso fazer por você. Tem muita gente na fila de espera, você sabe, e nenhuma vaga em vista; mas vou tentar te ajudar. Não, não precisa mesmo de nenhum documento, filho…

– Obrigado, senhora, muito obrigado – ganhei, ganhei a mulher, é o que penso; estou todo suado – muito obrigado pela sua atenção, amanhã passarei aqui, para saber a resposta. – Vou saindo cabisbaixo, mirradinho; a noite cai sobre o campus, belíssima em sua lua cheia azulando os enormes espaços verdes vazios da universidade, e se coalhando em uma pequena multidão de manchas esvoaçantes – são os gatos, que saem para o escuro, seu território pleno, atrás de restos de comida.

Entro no estacionamento e discretamente escapo de lá em meu Uno, na direção do edifício da faculdade de Letras, os faróis do carro acendendo mil olhos detrás dos arbustos, das árvores, dos matos altos. Mil olhos me olham.

Lisle, irmã mais velha de Hermes, me espera lindissimamente num vestido florido, sorriso simples no rosto sereno, livro do Arrigucci sob o braço. Convido-a para entrar no meu carro; finjo que estou procurando uma vaga para estacionar e paro num lugar um pouco mais reservado. Ao seu lado, sinto-me tenso.

– Seu irmão me disse das suas dúvidas desse livro – inicio, pouco à vontade – mas acho que não era disso que você queria me falar, não é, menina?

– O Hermes… – ela desvia o olhar pra fora, translúcidos olhos a refletir-se em flutuantes olhos de gato. Suas pernas se escondem sob o vestido somente a partir do joelho, ficando descobertos os braços limpos, suaves, e o peito magro, chato, de pele acobreada, macia, parecendo ter cheiro de sol. – O meu irmão anda um pouco estranho comigo… ele tem me evitado, sabe? Nós sempre fomos tão próximos, e agora… Eu fui pedir ajuda pra ele, ele disse que não sabia… Foi brusco, e me mandou falar com você…

– Olhe, Li – era seu apelido, não intimidade – eu não disse a ele que a gente tinha combinado de se ver…

Ela olhou rápido, profunda, nos meus olhos, e soltou:

– É bom, é melhor. Eu não sei por que ele está assim, é tão estranho, não sei explicar… – e pôs a mão no queixo.

Ficou um silêncio besta, de braços cruzados eu, ela de joelhos morenos. Lembro de ter desviado pra uma preocupação fora de hora – não sabia se meu padrasto estava com mãinha, a essa hora, no hospital, ou se sairia, antes que eu voltasse, atrás de bebida. Ocorre-me uma idéia, uma idéia meio maluca:

– Li, você sabe que eu quero muito bem ao seu irmão, não sabe? É feito um irmão mais novo, pra mim. Eu acho que ele anda tenso, por causa das reuniões do partido, só isso. O Hermes tem grande valor, Li – e ela assentiu, abrindo os olhos rasgados – um enorme talento, e eu velo muito por ele, você pode ficar descansada, sim? Que ele é muito importante pra mim. Olhe, Li, guarda um segredo?

– Claro.

– Jura?

– Juro, por quê?

– Eu fiz um poema pra o Hermes – na verdade, tinha escrito o tal poema era pra Lisle; mas tinha de arriscar neste palpite – um poema, que eu tenho um pouco de pudor de mostrar a ele, não sei como iria receber… Posso ler pra você?

– Nossa, claro, quero ver.

Limpo a garganta, olho para a lua, imposto a voz e vou:

– O título é “Esse rapaz”. – Mas havia um outro, que não disse: era “Não matarás”.

Ainda não há erro do qual eu não seja capaz,
nem sentimento do qual não me veja capataz.

Em meu sangue nenhum pássaro jaz.

Mas em mim persiste a dúvida voraz:
quando virás, o quanto abraçarás.

Ela fica me observando daquele jeito veloz e fundo como balas, ora olhando pra fora ora dentro dos meus olhos; meu coração bate depressa.

– Lê de novo?

Eu leio, aquele poema ruim, agora o vejo, naquela dicção retórica, cheio de rimas abertamente fáceis, mas que meu acento se encarrega de preencher de subjetividades misteriosas. É um poema meu, mas um poema mau, pois não sou eu, ou então, não de todo.

– É lindo – Lisle sussurra, com o rosto bem próximo – eu havia me achegado a ela enquanto lia, bem devagar. E olho, sério, nos seus olhos castanhos, pensando ser o momento certo: aí – suspensão – a beijo.

Uma boca morna, de lábios um pouco duros e resistentes, que eu procuro vencer inteira, por vias tortas: estranho amor este, onde estou fora do verdadeiro lugar, sou uma projeção, uma proteção, mas de quê, se de mim pra ela, ou entre os irmãos, ou uma fuga de tudo que se passa comigo, ou um instante de soberba, orgulho macho; tudo é, e mais, é só um beijo, mas não amor: eu respiro descompassado, acerco-a com meu corpo, meu humilde e úmido corpo pequeno e minha trêmula excitação; minhas mãos vão deslizar de seus ombros redondos, macios, que aperto, e aperto – ela se afasta:

– Não, não, por favor – esconde o rosto. – Desculpa, tá? – Me olha. Olha pra fora. – Acho melhor ir. Depois – abre a porta – depois, a gente conversa.

Onde é que tinha errado? Ah, estrangeiro, estrangeiro sempre. Mas era só um beijo. Saio do carro, vou para a aula de Latim, a que não assisto direito, perdido em estratosferas de raciocínios e temores. Tapetum lucidus. Diz a professora que este é o nome da camada vítrea nos olhos dos gatos, que, em vez de absorver, reflete a luminosidade: tapete de luz. Feio, feio, muito feio eu. A ilusão de ser um intelectual poderoso e cosmopolita se dissolve nas lembranças terríveis sempre vindo. Saio da classe, aqui fora o silêncio. Vejo-me nu, queimado, castigado, lascado ante o sol que não me alimenta, mas que me come de todos os lados, bicho carunchento na garganta, mosca varejeira invadindo a boca, o nariz, chifre de boi e galhos rústicos ralando as pernas. Os gatos miam alto: o que querem? Olhos de luz e miados escuros. A mão na mão da mãe, a mãe no alto sem olhar pra mim, olhando a lonjura do que vem, mas não vinha, não vinha nunca, não veio. E tudo o que faço é pensar no conteúdo da maleta, e então é como se minha mãe puxasse de dentro uma fresca força e com seu braço bom me botasse em seu colo. Chega. Tenho de voltar pra o hospital.

Mesmo à noite, o hospital é um organismo vivo, bicho de mil patas e cabeças e caudas, crivado de salas graves em que pessoas debatem-se por descobrir se venderão o apartamento ou as jóias para pagar o tratamento médico daquele que está internado: corredores densos de rancores frios confortavelmente limpos, de asseadas arestas. Embora minha mãe tivesse conseguido pagar um convênio, com suas economias de costureira, também nós deveremos arcar com tratamentos intensivos e remédios importados: a casinha onde vivíamos e meu carro foram postos à venda, e talvez não bastem. Por isso é que aqui quase ninguém sorri. Mesmo assim, por dentro eu trago um sol – seria aquele que orbitava a cabeça de minha mãe, no dentro do sertão?

Padrinho – é como chamo meu padrasto – foi-se mesmo. Diz sempre não agüentar essa situação, já há alguns meses; um disparate, ele fala – costuma voltar pra casa lá pelas dez, cansado e frouxo de velar minha mãe durante o dia, quando não estou. Um homem que cada vez mais é menos pra mim. Entro no quarto. Estado inalterável: dona Cleuda continua ausente, feito um feto de mandacaru, avançando emusguecenta sobre os aparelhos, cacto chupado. A enfermeira entra, me sorri, uma injeção aplica-lhe. Preparo-me para a longa noite: descalço os sapatos, pego de um livro à cabeceira, deixo a maleta ao lado da cama – observo-a pressuroso – acendo a luminária. Sai a mulher de branco. A sós, eu e minha mãe no coração do silêncio. Eu olho seus olhos dentro das pálpebras. E sinto nojo.

O que acontece nessa noite nunca vou saber direito: como esses sonhos em que temos a nítida sensação de cair, e caímos de verdade da cama. Tentava o sono, mas me tentava mais a imaginação o som de miados lá fora– poderia ser, até aqui, o ronronado dos gatos da USP? Uivos felinos no cio, parecendo crianças com a fome na garganta engasgada, me estremecendo as carnes como chicotes raivosos. Eu tentava o sono, fechava os olhos no frio quarto, enfezava-me. Vinham os miados, e daí, devagar, iam os mios miando, surdinos, doídos. As pálpebras, duas tumbas. Para daí os olhos de dentro, cada vez mais. Numa estrada sem fim. Fugir, fugir. Nunca mais voltar. Mas volta e meia tinha a cara de minha mãe grande junto à minha, rude e rala, rasgada terra sertaneja, ensolarada e desolada.

Eu retornava, em silêncio e com fome; dores pelos ossos, pelos nervos, pelas veias. Entrava em outro país, sem passaporte, distinção, idioma, sobrenome. Meu nome e o nome dela, Cleudival e Cleuda: coisas contíguas, em letras que numa barafunda de movimentos suaves duplica-se uma injeção carinhosa envolvendo meus miolos quentes e doidos. Agulhas furando o chão rachado, furos esguichando leite e pus. Luz que me vela os olhos, por todo o ar a luz que me aperreia, me desabita: urubus comendo-me os contornos, a estrada se indo embora, eu junto. Atrás. E os santinhos que ela levava, e o terço que rezava, e meu nojo pelo Salvador e o painho que não existia, o expulsador, o sol, só sobrando a terra nua e crua, relento dentro e fora. O medo enganando a fome, a fome esganando a raiva – raiva de seus santinhos. Nos atalhos por onde Judas perdeu as botas, os pés doendo, a mão na mão da mãe, suava, ardia; ela rezava, resolutamente certificada da vinda do Messias, o braço reto apontando o caminho da frente: o beijo por trinta dinheiros, não queira você meu filho dar nunca em ninguém. E me beijava a testa, em ensinamentos – eu tremia, convulso me rolando em mim. A estrada uma enorme língua sem boca. O calor do sol feito felinas línguas de lixa subindo pelas minhas pernas – o mundo era todo cheio de bocas. O beijo em Lisle, o beijo de Lisle em Hermes, a boca de Hermes na minha boca. Crispação. Lábios fechados da mãe em Cristo, por Cristo, para Cristo. E daí a chegada de um homem, um outro homem em casa, companhia para a igreja no domingo. Torvelinhos: minha bíblia rasgada que ela descobriu. Meus olhos que ela descobriu. Meu lençol que ela descobriu.

Estava descoberto.

Abro os olhos: a enfermeira me balançava o ombro; empurro a coberta, sento. Minha mãe tinha morrido.

Afinal.

Segue-se uma confusão de atestados, protocolos, cheques cautelares, documentação incompleta, preços imprecisos, brigas com os maiorais do seguro-saúde, procuras por coisas nunca antes sabidas: padre, caixão, velório, flor, cemitério, cova, pedreiro, coveiro, letreiro, dinheiro que não se tem na hora incerta. As economias nossas, diminuindo, sumindo. Meu padrinho e eu gastamos o resto da madrugada e a manhã toda atrás disso. Passada entre quatro paredes de madeira, dona Cleuda é um nadinha, um recém-nascido ao avesso. A pior parte é levá-la ao crematório: não há papel com ordem expressa sua para que seja feita sua vontade, que ela me declarara, e quase acabamos aceitando fazer o enterro simples. Mas, à semelhança da cena no Crusp, consigo a tal documentação, e é dispensado o restante. E minha mãe – ou seu corpo, que sua alma não pode haver, é em que acredito – pode ter satisfeito seu desejo. Morria de medo de despedaçar dentro do caixão, braço na boca de um verme, pé espojado na de outro, cabeça comida, cortada, feito a dos cangaceiros esquartejados pelos macacos do exército. Lá se vão lambendo as chamas pelo caixãozinho orgulhoso: meu padrasto chorava sem parar, mãos unidas no terço. Meu padrasto e eu, homens desvinculados. Preciso pensar no que fazer a casa, com o carro, com o dinheiro que estávamos devendo – remédios, médicos, hospitais. Precisava pensar na minha vida, e depois. Entretanto, só tinha cabeça para lembrar, repentinamente, das vezes em que lia Dostoiévski pra ela, enquanto ela fazia crochê, um braço sumido nas cores das linhas: ela acompanhava com devoção e grande atenção – era analfabeta –, como se fosse uma novela de TV. E sabia todos os nomes difíceis daquelas personagens frias, e comungava de meu esforço por conhecer outros mundos.

De volta à USP, encontro-me com Hermes e Lisle – ela com o braço no braço do irmão. Teria contado a ele sobre ontem? Preciso saber, não posso ser enganado. Mas, a uma pergunta de Hermes, aproveito e narro de uma vez a história da morte da mãinha. Dizem-se chateados, e procuram consolar-me. É estranho, pois começo a receitar meus princípios – o fim do corpo no corpo, a ausência do espírito – como uma espécie de justificativa. Tão calmo pareço, que Lisle acha que estou brincando, que é tudo mentira, pois nunca havia dito a ele de nada. Sou levado a falar que chorei, que sofri muito. Parece-me um pouco desagradável e entediante, conversar assim de minha vida com eles. Estando na hora pra o início da aula, vão-se. Sinto-me ridículo, como se tivesse que ter dado razões para emocionar-me.

Fecho a livraria. Onde estará Teobaldo? Com fome, com certeza. Vou até o Crusp, ver o resultado de meu pedido.

– Aceito. Tem um quarto que acabou de vagar. Isso, assina aqui. É, rápido assim. A documentação tá ótima – me diz um homem barbudo. Pergunto sobre a senhora com quem conversara na véspera. – Pediu desligamento ontem mesmo – e eu me espanto: – estava passando por problemas, dúvidas em relação à profissão. Parece que veio uma pessoa aqui e ela ficou muito deprimida com a situação dela. Não sei se volta. – Ah – é tudo que consigo dizer. Pego a chave, os papéis, agradeço, e me despeço.

Noite. Calmo, caminho até o Crusp. Um lance de escadas e estou no quarto – um espaço de cinco por cinco metros, tendo de um lado uma pequena cozinha, um banheiro, e ao centro uma janela. Slogans políticos, corações, palavrões – as paredes são um piche só. Nem hesito: jogo a maleta sobre uma cadeira quebrada, estendo-me sobre um colchão embolorado ali, fecho a porta e adormeço, olhando a fria e boa lua.

O sol, mais uma vez soberano, é quem me arranca do torpor, junto de barulhos no quarto ao lado: os gemidos de um rapaz e os gritos e guinchos da garota num crescendo. Diabo, parece que estão todos nesse maldito cio. Por que não consigo um pouco de silêncio? Vou ao banheiro, lavo a cara; lembro da escova de dentes em minha maleta e volto. E de dentro, no meio de um livro e outro, aponta-me definitiva a seringa com a dose de cloreto de potássio. Na medida certa para um ataque cardíaco fatal, sem deixar vestígios ou suspeitas. Vêm-me a tona, de uma só vez, as cenas terríveis da noite passada: a agulha da seringa brilhando no escuro do hospital, o brilho que julguei ser dos olhos da mãe subitamente abertos, a procura por uma veia em seu braço; a febre, o sono, os sonhos secos; a busca pelo seu e meu alívios, há tanto tempo, meses que eu levava a seringa na maleta, desde antes do hospital, à espreita do melhor momento. O alívio, o fim do sofrimento, mais meu que dela. Rodo pelo quarto, sem ar, vou até a janela, ainda segurando a seringa. Mas ali a dose de cloreto parece intacta. Eu não a utilizara, afinal? Talvez não tivesse precisado, o que de modo algum poderia me aliviar. Como saber agora? E como pudera ter a idéia absurda de matar um ser já tão impregnado de morte?

A cabeça estrala de espanto, quando então vejo, bem debaixo da janela, meu gato Teobaldo, olhando para mim. Surpreendo-me por ele ter vindo de tão longe – o Crusp fica a alguns quarteirões do prédio da Letras – teria vindo me procurar? Mia. Mia obsessivamente. Num segundo, voa sobre um pássaro muito pequeno, que eu nem havia percebido, ao meu lado, no parapeito. Este deblatera-se na boca do bichano, porém é pouco, e pára. Agora são só ossos crepitando. Quase não sobra sangue. E agora é só um gato alimentado, seus olhos misteriosos, sua forma malhadiça esculpida em reentrâncias iluminadas pelo sol, pelo vôo que lhe vai dentro. Depois disso é que tive a súbita vontade de escrever.

Olho para essas páginas, seis ou sete horas depois, olho para o lado de fora do quarto, meu quarto, agora: vejo um verdejante campus, atrás o sujo rio Pinheiros, atrás uma massa opaca de edifícios feito uma fileira de tumbas. Mais que só, sou inteiriço, monobloco. Detrás da parede o casal se aquieta, nos meus dedos o gato ronrona; penso em Lisle, em Hermes, em minha ausência de cordas com o mundo, de motivos para continuar, e nesta dúvida horrível pelo desejo que tive e não sei se concretizei. De tanto escrever, meu braço dói. Penso que, então, finalmente, posso dizer: sou todos e sou ninguém. Poderia até mudar-me para outro nome. Mas qual?

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Verão, 1996.

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fevereiro 23, 2008 at 4:14 pm

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Texugos

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Era amigo de avencas, texugos e relógios. Todo dia ele curvado dando pêssegos às crianças, o rego aparecendo, alvas sobrancelhas sorridentes, flores no chapéu. Queria mostrar os bichinhos, fazer festa pra eles e pras crianças. Os pais não o engoliam: homem do saco, a sentença. Contudo não se enganava a molecada – o tio Floreal era gente fina. Uma flor de pessoa.

Duas menininhas, tarde de sol, sorvetes de pêssego e um livro de figuras – o caminho pra casa se alonga. De entrada, ganham um punhado de frutas e avencas [quente, a estufa, tio]. Tati e Lulu então conhecem os texugos: tão fofos bichinhos comem na mão. Na mão comem, e aí comem a mão – querem o braço, os lindos texugos; as pernas; os corpinhos; os olhos: os olhos de Tati e Lulu [gritos inúteis das meninas no sumidouro das bocarronas].

Desconsolado, o bom velhinho – em seus olhos recorta-se um vale de lágrimas a avinagrar o vidro dos relógios, molhar as molas, estragar as engrenagens. A própria cabeça ele estapeia. Os texugos observam quietos: um corre à estufa, retorna com dois pêssegos, pendurados na boca pelos cabinhos. Coloca-os aos pés de Floreal, que os cheira, ainda entorpecido e fungo. Enfim, dorme, ronco rude, e sonha – uma aquarela de relógios avencas menininhas.

Acordou assustado: os texugos mordiam suas sobrancelhas, resfôlegos, faimantes. Já os pêssegos no saco, ele voltou, fatigado, em curva, à rua, onde pessoas em desfile vinham empunhando tochas. Os relógios de sua casa talvez estivessem fora de prumo, mas tio Floreal não saberia mais dizer que horas são.

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Primavera, 1997.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:10 pm

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Sujeitinha!

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Vem buscar-me que ainda sou teu.
[Vicente Celestino]

O fêmur esquerdo em dois pedaços, Vicente chegou à choupana de sua amada arrastando-se, trazendo-lhe embrulhado num papel de pão o falante coração da progenitora. Vitória, que contara como certa a loucura do camponês, estendeu-lhe a mão, enxugou um soluço; sustentando-se na parede, sujo de sangue, ele abraçou-a: – Está provado agora que te quero? – Ela somente assentiu ao ex-filho único como olhos encovados de choro arrependido. Nada a fazer: culpa sua, só. Deu a ele a outra mão e Vicente mudou-se, naquele momento mesmo, para o casebre da namorada solitária. Embora a perna doesse muito, amou Vitória sem esperar por ela tirar a saia, os dentes nos seios brancos de bicos grandes, a aspereza da língua arranhando a vulva; vergões vermelhos na amada surgindo aqui e ali – a forma de seu amor, feito fome, feito faca.

Saciado, olhando-se no espelho do lado da cama de Vitória, lambendo-lhe o umbigo, viu, do outro lado, sobre a mesa, o ensangüentado músculo materno – a pulsar. “Mas que coisa, coração nenhum assim se mexe ou fala!” E virando-se para a amante: – pra quê tu queria o coração da minha mãe? Pra deixar pras baratas, na cozinha? – E ela respondeu: – Vicente, aquela hora eu estava só brincando, não quis dizer… – Ele levantou-se: – brincando, Vitória? Tens idéia do que fiz pra ti? – Ela permaneceu em silêncio, as mãos entre as pernas quentes, encolhida. Vicente mirou-a de cima a baixo. Seu feito modificara sua percepção sobre as coisas, o que lhe dava uma certa dor de cabeça. – Pois – cuspiu, encarando novamente o espelho. – Sei o que tu fazia antes aqui, como ganhava a vida. – Ajoelhou-se, a barba e os olhos negros crescendo junto ao ouvido da namorada. – Mas hoje, e daqui pra frente, tu vai ser só minha. Só. Entendeste? – Ela outra vez disse sim com os olhos, já pensando no que falar a quem lhe batesse na porta. Vicente foi até a mesa: – Antes de tudo, vais me fazer uma coisa. Assim como eu fiz um sacrifício, tu vai também. – Pegando o coração, estendeu-o para a amada: – tu pediste o coração da minha mãe. Eu te peço que tu coma! – Vitória arregalou o olhar: – Quê isso, Vicente? – Ele colocou o coração à frente dos lábios dela: – Come! –, ela afastou-se, sentindo o cheiro doce; ele repetiu: – Come! – abriu a boca de Vitória, e empurrou-lhe o coração – come! Come! –; Vitória começou a chorar, estômago torcido, língua com uma palavra grossa presa a perceber o sabor da sogra – come! –: e ela entregou-se, os dentes desfibrando suavemente a carne tenra do coração rubro quatro cinco mordidas, as gengivas ferindo-se; não se contendo, gritou, quando a carne sumarenta desceu-lhe o esôfago, e por mais que fizesse, não conseguia expulsá-la de si.

Vicente abraçou a namorada, lambendo suas lágrimas.

Depois daquela noite não tocaram mais no assunto. O coração foi levado por um cachorro que entrara na casa pela porta aberta e Vitória saiu às ruas, noticiando o noivado aos conhecidos. Iria ainda à choupana de Vicente – pois ele não podia andar –, buscar umas coisas. Teve ela mesma de enterrar a gorda mãe do amante, no quintal, sob umas coroas-de-cristo. Aos vizinhos espalhou que a sogra precisara viajar. Eles não se importaram – a velha não significava para eles mais que uma beata chata.

Semanas se passaram, Vicente sempre na cama, cuidando ora da própria perna, ora da vagina de Vitória. O amor os tornava babosos, viviam de apontar estrela. Um dia a barriga berrou. Vitória pensou em costurar para fora – única coisa que sabia fazer, fora embalar homem – e teceu noites a fio. Costurou, costurou, até com as pernas abraçadas às do amante costurou. Infelizmente as vizinhas não lhe pagavam o merecido, se queixando da safra ruim dos esposos, ah, esses homens inoperantes. E Vitória, a moer-se de trabalho, à noite só queria travesseiro. Vicente não gostava da diminuição em sua cota de afago, mas resignava-se, certo de que logo ia sarar.

Contudo, meses e meses e nada de cura. A perna parecia entortada. Doía. Doía muito. Para não senti-la, bebia. Somente o ronco fazia-o suportar-se a si. Vitória o espiava, a baba saindo dum canto da boca, o bucho fofo. Tinha temor, tinha amor pelo come-dorme. Não sabia o que fazer, tanta conta pra pagar, ali as quatro paredes do casebre desabando. No espelho, seus peitos cresciam, e para baixo.

Então, o inevitável: o feijão-com-arroz de gosto ruim virou indigestão e pesadelo, o botão mal-costurado caiu, o mau-hálito de manhã cedo ardeu nas narinas. O lar é o mais edificante dos venenos, e doce demais cria cárie, abcesso e câncer. Vicente deu pra beber, Vitória para rezar. Pedia a Deus e à Virgem Santíssima que o amante melhorasse e arranjasse um emprego – viver assim não pagava a pena. Os olhos cansados, vesgos de ponto, nó e cruz. A noite levava sempre duas garrafas, e se Vicente a pegasse de dedos entrelaçados no rosário, ah!: mandava-a ajoelhar-se e rezar para o único deus que conhecia, aquele entre as pernas. Vitória teve de comungar com o Supremo escondida no banheiro – e pouco a pouco foi crescendo nela um nojo das coisas do amante, até alegrava-se quando Vicente bebia além e não tinha vontade, o que era cada vez mais ocorrente – de nu, só agüentava Cristo crucificado. Na madrugada, no espelho, debaixo do ventre redondo e doente, entre os caracóis do púbis, ela notou uns cabelos brancos.

Uma tarde Vitória entretida entre saias, Vicente entre porres; na porta, três pancadas: – será possível? – pensou ela. Foi atender, era um amigo de outras épocas. – Corre daqui, casei-me. – O homem não foi, Vitória com medo que o marido acordasse, o amigo insistindo numa recordação, acontece o temido. Vicente escutou o vozerio masculino e com muito custo dirigiu-se à salinha apoiado num cajado. – Querendo remediar nossa miséria como dantes, sujeitinha? Tu vai ver! – O cliente desinformado escapuliu; Vitória pediu compreensão; Vicente ofereceu cajadada: – Sujeitinha! – E tome porrada. A mulher fugia pela sala, gritava – não é nada disso que estás pensando~! – ele revidava, com os nós dos dedos: – pensando quê, debaixo de meu teto! Sujeitinha! – Sangrando pela boca, em meio de asco e desespero, Vitória ajoelhou-se aos pés de Vicente, as mãos em cruz: – Por minha Nossa Senhora, Vicente! Meu coração é só teu! – Então os olhos dele se escancararam, entrevendo alguma coisa além da ressaca, além da mulher, além da situação, além dele mesmo, e com a perna boa chutou a amante – que foi parar do outro lado, a nuca espetada numa quina da mesa – Sujeitinha! – ; ele rasgou-lhe os trapos negros que ela vestia, mordendo-lhe o pescoço; abaixou a calça, fez-se nu sobre a mulher de olhos mudos, entrou nela, penetrou os dentes em seu seio esquerdo, de onde escorria uma gota de leite, penetrou os dentes pelas suas carnes – Sujeitinha – arrotou, e reclinou-se ao lado do corpo da amante; mirando-se lá do espelho do quarto, brincou com a cruz pensa do pescoço de Vitória, a massagear a perna insensível entre moscas, permanecendo assim até de manhã.

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Verão, 1989.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:10 pm

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Relato entre Machado e faca

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Nada podia acontecer de novo. Os alunos chegavam em sua espasmódica gestualidade, um pé querendo ficar para um café lá fora outro interessado na aula do mestre Valentim; mas é claro que sempre havia os terceiros, ali apenas obrigados — pais, convenções, currículo. Por trás das janelas fechadas da classe, breve quase todos se sedimentavam nas cadeiras. Fazia frio e a maioria abotoava-se dentro de casacos; bons casacos.

Como o meu. Sentado nem muito à frente ou atrás, em panorâmico observatório, entre uma página e outra de Schwarz espiava meus colegas enquanto aguardava a chegada do professor de Literatura, que traria com suas observações sempre brilhantes a fruição estética esperada para completar minha sexta-feira — dia aziago —, destinada a proporcionar-me um líquen, que fosse, de transcendência. Nada demais.

Vinha o Valentim, com seu ar de duende de botequim, pequeno-gordo meio manco, uma simpatia automática no sorridente olhar azul, chispante. Aproximou-se vagaroso da mesa, em que depositou alguns livros, apoiou um pé a uma cadeira, e ao mesmo tempo que fez um comentário banal sobre o tempo levantou a meia preta, amarrou o cadarço do sapato marrom. Simples. Sentou-se como se a um almoço de arroz e feijão, a cara rosada de papai noel desnatalizado, sem barba. E é assim sua fala, grave e quente: — um intelectual prosaico, cabeça coroada por careca; um bebedor de livros.

Isso, só, e eu abri o caderno, pronto para assistir às suas lições de Brás Cubas. Pronto para assistir.

— Vamos hoje ler o capítulo “O Humanitismo”, né. Abram lá, é o capítulo cento e dezessete; pra quem não sabe, C – X – V – I – I em romanos…

E entremeando leitura, comentário, análise e interpretação, Valentim foi nos servindo várias talagadas do Humanitismo de Quincas Borba. Filosofice diabólica de Machado de Assis, encruzilhada de Catolicismo, Positivismo e Darwinismo em falsos silogismos, iluminado por um senso mais que comum, medíocre, o Humanitismo que ali nos era exposto nada mais escondia que a velha e boa justificação fatalista do poder óbvio dos mais fortes sobre os mais fracos — pela ótica dos poderosos, evidentemente. A aula fluía macia, Valentim em sua maneira monólogo-quase-diálogo me entregava de bandeja litros e mais litros da mais fina crítica. E desta maneira eu pousava em meu caderno azul mais uma fatia do grande conhecimento à disposição na sereníssima USP, — assim como quem vai ao banco depositar na caderneta de poupança, ou pagar outra parcela do seguro de vida, ou um consórcio, um carnê. Segue a leitura:

— “O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte […], segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”

Nisso, o professor — que lia com os óculos bifocais tão colados ao livro que parecia cheirá-lo — empinou as sobrancelhas brancas vindo o olhar arguto na garupa, direcionado à porta:

— Pois não? Você quer falar alguma coisa?

Um homem alto, da cor que o IBGE chama ‘pardo’, camisa xadrez para dentro da calça jeans, acenava à entrada da classe com algo que parecia um bilhete. Seus enormes olhos negros continham uma emoção indefinível — uma zona cinzenta em que coabitavam a súplica educada, a ameaça tenebrosa e uma terceira força que logo identifiquei como fome, fome de alguma coisinha quente. Ele estendeu o bilhete e seu gesto dava a entender que queria ir até Valentim. Nada falava, o que logo estranhei. E me impacientei um pouco, dado que a aula estava tão interessante.

— Façavor de entrar — estendeu por sua vez a mão o professor, deitando de lado os bifocais.

Assim o homem caminhou, tímido, semicambaleante, ou encolhido de frio, pelos intervalos entre as cadeiras que abarrotavam a sala, Moisés atravessando o Mar Vermelho, até chegar a Valentim. Entregou-lhe o bilhete, meio sovado. Novamente o professor colocou os óculos e aproximou o papelzinho do rosto; parecia atravessá-lo com o olhar: um médico-legista, um ourives em dúvida.

— Ele está pedindo aqui para que eu leia o bilhete para a classe. Vou lê-lo.

Sou mudo. Quando eu tinha sete anos, meu tio me arrancou a língua. Estava bêbado. Estou aqui pedindo pra vocês uma ajuda, pra poder comprar um barco.

O homem tocou o ombro do parofessor, que rearqueara os sobrolhos e as sobrerrugas. E abriu a boca, feito o Valentim um médico.

O professor afastou-se — seus olhos se abriam mais e mais.

— Não é preciso fazer isso, meu rapaz: sua história é não só verossímil como verdadeira. Agora eu, como sou um pobre professor — remexeu nos bolsos; surgiu o verde de um real — tenho muito pouco a lhe oferecer.

Então o homem voltou-se para nós, a classe, repetindo o gesto: escancarou a boca marrom, onde luziam dentes fortes — e nenhuma, nenhuma língua. Talvez um toquinho, lá no fundo; não dava para ver direito.

Por essa eu não esperava. Nem eu, nem a classe. Caiu um silêncio rochoso. O espanto. Chegáramos ali para um aula de literatura e fez-se este espetáculo de noite, noite escura na boca muda de um homem que nos pedia esmola. Mas, em vez de me solidarizar aos sustos dos colegas, acelerava o crescimento do meu próprio. Era como se um chão se abrisse, ou um teto, e senti coceira no cérebro, queria unhar de meus miolos alguma luz. Isso era muito mais estranho que dois ociosos a brincar de Sócrates em volta de um frango assado. Não havia ali nenhuma amenidade, nem sinal de complacência, amizade ou sentido — havia um homem que abria a mão, e ela estava lisa branca; abria a boca, e nela não se agitava uma língua, há muitos anos —: era o vazio, o vazio.

Mas também era ridículo. Na faculdade de Letras ingressa um homem sem língua! Imagino o estranho vestibular por que deve ter passado. Fora sua língua cortada em duas fases? Qual teria sido sua nota de corte? Mistérios. E a etapa de ‘bicho’? Quem sabe aí aprendera o ofício de esmolar. A cara toda pintada, o cabelo rapado, pedindo aos motoristas, nos sinais, um dinheiro para repassar aos ‘calouros’. Vencida a concorrência com os mendigos, paralíticos e crianças de rua locais, a brincadeira acabou ficando mais interessante que assistir às aulas e ele ia, de classe em classe, rodando o chapéu, digo, o bilhete e sua historinha edificante.

De outro lado, minhas mãos continuavam a arrancar talos e mais talos de neurônios na tentativa de preencher aquele oco: como é que alguém arranca a língua de outro alguém, assim sem mais nem menos? “Meu tio estava bêbado.” Não, isso não era desculpa, nunca suficiente razão. O que teria aquele homem dito ao tio para perder a língua? Aquilo era o Verbo castrado feito luz, e era luz. E eu vi que não era bom. Pois que pecado indizível seria pago por uma língua de sete anos? O homem ainda justificava o ato pela bebedeira do tio. A coisa me deu um ódio tão grande que quase turvou a suspeita de uma farsa: o homem poderia já ter nascido assim, e como tantos, fazer do aleijão seu ganha-pão… O vazio que alimenta o vazio.

Humanitismo nenhum explicaria o fato. Ninguém fica sem a língua impunemente. Se — pela lei das compensações da qual se dispõe Humanitas, o princípio gerador — a quem se tirasse uma língua correspondesse outro que a tem, qual seria a minha posição nessa luta? Sorte a minha, a de não ter entre os irmãos de meus pais um alcoólatra portador de facas. E um bêbado, de olhar tropicante, de mãos trêmulas, desprovido de centro de gravidade, pode cortar a língua de uma criança assim, tão fácil? Deveria ter havido alguma luta. Qual o motivo? O sobrinho mostrara a língua desaforadamente ao tio?

O homem mostrava a sua não-língua para mim, e eu tinha vontade de arrancá-lo da frente do meu professor, da minha aula subitamente atravessada por esta barbárie, fina flor cortada com a navalha suja que entrara pela porta dos fundos da minha Universidade, para onde fora tranqüilo estudar a inculta e bela língua Portuguesa. Como uma faca pode abrir um corte mais fundo que um Machado? Com que direito esse fulano invadia a minha vida tão suavemente organizada em notas de aula? Deve existir alguma lei que proíba pessoas sem-língua de interromperem o estudo de pessoas com-língua educadamente assentadas, suas línguas quietinhas dentro da boca a espiar a do professor agitar-se com desenvoltura e graça.

E, mais ainda: “uma ajuda pra comprar um barco”? Muito bonito, um sujeito sem língua pescando por aí, mudez desfilada entre peixes e águas silenciosas! Poético, mas — que eu faria com meu nojo? Pois o homem estatuado à frente era uma mosca no meu consommé, era tudo o que eu não queria ver naquela sexta-feira — dissera já, dia aziago.

Urgia resolver a situação, dar ao menino do semáforo o trocado para que ele não riscasse a pintura do nosso carro. Sem culpas. Uma vez que estou pagando, tenho ao menos o direito de saber tudo tintim tintim, não é? Ou, simplesmente, desembolsar o dinheiro: mais prático. Por falar em praticidade, esse negócio de esmola deveria ser mais higiênico, quem sabe com hora marcada, ou, melhor: uma conta que se paga no banco, se possível por débito automático — aí, só nos daríamos conta ao tirar o extrato no caixa eletrônico. Se fosse assim, quem sabe o sem-língua aqui já estivesse com seu barco e nem me interrompesse a aula tão interessante, não é mesmo? Quem sabe nunca o teria visto, e ao vazio em sua boca. O vazio. O vazio.

Entreguei ao homem uma nota de um real, como a do professor. Nossa única mediação possível. Não, não serei metafísico sugerindo que aquele homem poderia ser eu, em outra dimensão do tempo: fora de dúvida. Imagine se iria acontecer a mim uma coisa dessas. Metafísica é bom para o Pessoa. Eu consumo chocolates. O homem queria um barco. Pescava então esmolas a esmo, esbarrando nas cadeiras. Alguns colegas não davam; muitos, por falta de dinheiro; outros, por falta do que se convenciona “compaixão”; os demais quem sabe não acreditassem que esmola desse certo. Por que investir dinheiro a fundo tão perdido? Uma esmola só não resolverá. Quanto a mim, sei lá porque lhe dei o dinheiro. Talvez porque tivesse gostado da exibição. Ou tenha apreciado a poesia na idéia do barco. Talvez medo de parecer desumano; afinal o mestre deu o exemplo, cumpre segui-lo. Pode servir num bom conceito, mais tarde. Com certeza, pago a língua.

O homem se encaminhou à porta. Parou, me olhou, e fez com o polegar um gesto de positivo. Me peguei sem querer o imitando; mas logo recolhi o dedo, envergonhado. O homem sorriu. Ao vencedor, as esmolas. Um reconhecimento. É. Ele venceu.

Mas não.

Valentim pigarreou:

— Bem, voltemos ao nosso infeliz Brás Cubas…

E o simpático mestre, coçando de leve a testa, começou a discorrer sobre como, à luz do Humanitismo, a inveja pode ser uma virtude. Em parte, concordo: não deixei de sentir uma estranha inveja pela não-língua do homem. Estranho. Só não conseguia refazer o círculo vicioso e chegar ao virtuoso da questão. Enfim: isso passaria. Um Machado podia ser mais eficaz que uma faca, depois disso? Os alunos retornavam sua atenção ao mestre, depois dos cinco minutos de silêncio absoluto. E algo se remexia, dentro. Um silêncio de guelras em madrugada, prestes a ser capturadas por uma quieta rede. Não sei, não sabia. Ah, foi só um susto. Porém, essa sensação de vazio. Mas não, foi só um susto. Voltamos à aula. Não aconteceu nada.

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Inverno, 1996.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 4:08 pm

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Quadrilha

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São cinco da manhã e o táxi pára perto da Faria Lima, Pinheiros, entra um casal que parecia uma coisa só e o rapaz dá o endereço nas Perdizes e se jogam no banco de trás enroscados se beijando e se pegando em todas as partes, é o que vê pelo retrovisor estratégico o tiozinho taxista meio gordo e já careca com bastas costeletas brancas ficando de pau duro viajando na cena resfolegante indo cada vez mais devagar embora o rapaz peça para que ele corra até chegar à rua Cayowaa quando o rapaz tira uma nota de cinqüenta e joga para o taxista dizendo é aqui, olha isso dá pra ela ir até a casa dela, eu vou entrar porque os meus pais estão me enchendo o saco por causa do horário e dá um beijo na garota loira saindo do carro correndo enquanto o taxista pergunta para onde vamos, moça? ela bufa e responde Vila Madalena, mexendo nos cabelos loiros nervosa e acendendo um cigarro na seqüência sem desviar dos olhos caídos do taxista impressionado, batendo a cinza pela janela ela começa eu não agüento mais essa conversinha de meus pais vão me encher o saco, a puta que o pariu!, você viu o estado em que ele me deixou? isso não é coisa que se faça com a namorada ou com mulher nenhuma, e o senhor quer saber de uma coisa? quer saber de uma coisa? ela repetiu e o tiozinho nervoso mas de pau duro o quê, moça? isso não vai ficar assim, pára o carro agora mesmo, mas aqui, moça? é aqui mesmo debaixo dessa árvore e então o táxi parou e ela desceu do banco de trás e pulou para o banco da frente e daí para o colo do taxista puxando a meia-calça preta de lado deixando entrever a xota molhada e já indo para o cinto do tiozinho vai ser com o senhor mesmo, o seu pau tá duro, não tá? põe a mão na minha bunda, gemeu ela, assim, puxando, isso, e apertando as mãos do taxista apalermado com uma mão enquanto com a outra puxava de dentro da cueca verde dele o pau já um pouco úmido, vai, trazendo a calcinha toda para uma virilha ela foi e pediu me fode gostoso enquanto pulava com toda a força do púbis sobre o pau do tiozinho que ganiu, ai moça, ao mesmo tempo em que caía de boca nos peitos resplandecentes da loira que pulava e pulava gritando seu puto, seu puto, fode minha buceta assim, seu puto, seu babaca, liga esse carro agora, mas como, minha filha? liga essa porra senão eu te mato, ele tira a mão da bunda dela e gira a chave no contato pra onde vamos, moça? vamos, seu puto, voltar pra casa dele, mas, minha filha, pára com essa merda de me chamar de tua filha, você por acaso fode gostoso assim a xoxotinha da sua filha, hein? e sem querer ele pensa na filha de quatorze dormindo no berço com os peitinhos despontando debaixo do lençol, já que ela tirou a camiseta por causa do calor que era tanto que do meio do sono ela jogou para longe o lençol e ficou só de calcinha e peitinhos apontando para o pai que agora chupava seios e faróis altos explodindo no meio das ladeiras da Vila Madalena, para onde vamos, filhinha? nós vamos voltar pra casa dele, seu velho gostoso, mas e se ele ver? ele não vai ver, eu só quero ficar na frente da guarita do prédio dele, pra que o porteiro veja e conte, gemia ela na orelha do tiozinho com extrema dificuldade em mudar de marchas, tentando manter a terceira mas com a primeira já mandando brasa e aí conte para o zelador e o zelador pro síndico e o síndico pra mulher e a mulher para a vizinha e a vizinha pra filha e a filha pro irmão e o irmão pros amigos até chegar depois de toda a torcida do Corinthians no ouvido dele, gemia a loira no ouvido do tio que sentia as calças encharcadas da enxurrada que jorrava das pernas da menina lhe lambendo a carne rugosa do pescoço, seu velho gostoso, pulava feito cabrita enquanto da direção contrária um caminhão quase bateu no táxi, é aqui, mordeu ela, pode parar, mas não pára, puxa o breque de mão, imbecil, agarrou a mão do velho e levou-a até sua bunda de estátua suada mete o dedo no meu cu, isso, mete dois, gritou, fundo, lá no fundo, eu quero sentir seu pau encontrando tua mão dentro da minha bunda, vai, me machuca, me deixa louca, apertou o botão do vidro e o desceu e gritou Tiago!, Tiago, moça, não chama ele não que ele me mata, mata nada, é um cuzão, caga de medo dos pais, não vai ter medo de você? me diz, você tem uma filha, é por isso que você me chama de filhinha? não, moça, vai, mete esse pau grosso lá dentro, e arrancou casaco e corselete explodindo os peitos acetinados no rosto do tiozinho, como é que chama a sua filha? minha filha, gemeu o taxista, não acreditando que seu pau ainda estava duro depois de tanto tempo, Tiago! como ela chama? Maria, puxa, mas Maria é o nome da minha sogra, ela geme, Tiago! uma sombra ondula em uma janela do prédio cujo vigia já está mandando ver uma punheta na guarita inconformado com o taxista comendo a loirinha namorada do rapaz do 71, parecia tão séria da outra vez mas desta de repente tira a buceta de cima do pau do tiozinho e gira as pernas sobre ele apertando com os peitos a buzina e reclamando porra, não dá pra botar esse banco pra trás? o que o tiozinho faz com muita dificuldade pois a bunda da loira está escancarada à sua frente, me fode no cu, eu quero que você me foda no cu, vai, me abre e mete esse pau gostoso lá dentro, Tiago! Tiago! ela urra quando o pau do taxista entra rasgando e a sombra no sétimo andar melhor se distingue, na verdade é uma silhueta em movimento, como o jovem vigia dentro da guarita puto com a sorte dos outros, Bíblia aberta no Salmo 23, o Senhor é meu pastor, nada me faltará, Tiago, sou eu, me chama de Maria, pede ela, moça, não, gagueja o tiozinho lembrando de sua filhinha na cama com os peitinhos duros e o suor deslizando pelas axilas e as mãos escondidas entre as pernas apertadas pois sonhava com um garoto da escola, o garoto mais velho do time de futebol, por favor, velho gostoso, me chama de Maria, Maria, ele geme, Mariazinha, isso, me fode com força no rabo, me fode com força no rabo é o que parece dizer uma sombra à outra na janela do sétimo andar, Tiago! Maria! ela puxa a cabeça do tio junto à sua nuca, me machuca, me morde, ele morde, agarrando a loira forte pelas ancas e gemendo Maria, e você quer saber?, Mariinha, isso, Maria também é meu nome, diz Maria, e qual é o seu, velho gostoso? me morde na nuca, Maria, Maria na cama brincando com seu clitóris na madrugada em que o pai chegou para encontrar sua filhinha dormindo no quarto excitada com o garoto da escola, ela que sonhava com um romântico quarto-zagueiro nem sonha que o pai se masturba à entrada do quarto, mão dentro das calças, enquanto vê Mariinha morder o colchão molhado de calor, como o calor que invade o peito do vigia desgraçado na guarita escura gozando sobre a Bíblia, como o calor que invade o ânus da loira quando o taxista goza Maria! Maria! Tiago! você não ia acreditar qual é o meu nome, minha filhinha, arfa o tiozinho, Tiago! sou tua! eu te amo! grita ela, que também goza, junto com Tiago, o namorado, que resolveu descerrar a cortina da sala, em que goza na bunda de uma mulher mais velha e estranhamente parecida com ele, e ela também goza, pedindo diz que me ama, Tiago, que grita eu te amo, Maria, eu te amo!, acordando todas as luzes de Perdizes, foi a melhor trepada que eu já dei na minha vida, a mulher me comeu e ainda me pagou, sério mesmo, enfiou a grana na minha cueca feito eu fosse uma puta, contará o taxista em outra ocasião aos risos entre uma cerveja e outra a seu novo amigo, o ainda inconformado vigia do prédio que não se chama J. Pinto Fernandes mas detém a posição de quarto-zagueiro no time do colégio.

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Outono, 1998.

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fevereiro 23, 2008 at 4:05 pm

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Organização & Método

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1. Manhã de mar parado e ar errado. O mundo amarelo, nosso tempo ido: último dia do ano – o que era? Eu tinha muitas perguntas e sentia calor demais. Cedinho saímos do escuro, dar uma banda atrás de comida. Os playboys fritando no sol pareciam mortos. Tem gente que nasce morta, mãe? Os quatro famélicos sem força pra gastar nadando – parecia que a gente economizava toda energia pro plano, que a gente repetia uma porrada de vezes pra não errar. A areia rasgava o pé, catei uma conchinha – curtia o sussurro dentro. Nada de rango. Nas latas de lixo nem resto: meiavolta, caverna volver. Só João vazou pra voltar mais tarde muquiado nuns óculos escuros. Catei de uma das peitudas gostosas, mandou cínico, pele camarão. Dormi, ou desmaiamos. Não lembro.

2. Esse porra desse sorveteiro, cadê que não aparece? O calmeiro deixava a gente bêbado, furioso. Derbinha previa: – alguma coisa chegando ao fim. É o fim do ano, animal: Toninho de nós o mais rude, o mais chefe. Entra ano sai ano a gente nessa merda – defendido por um de maior. Bando de otário! Tio Nino explora nós, faz a gente pedir esmola, bater carteira, bate em nós depois: troco do quê? Não ser justiçado? Ué, Derba cutucou, mas eu achava que tu gostava dele… A gente caiu na risada com Derba rebolando. No que o Tony deu um pontapé bem no cu do Derba, aiaiaiai. Quero saber de graça, putinho? Tua batata tá assando e tua bundinha tá guardada. Nós passando necessidade, aqui fechado. Fome, sede. A praia lotada de gambé. Toninho, dentes faiscando, de tanto sol tava de preto o demo. Tamo fudido. E esse corno desse sorveteiro, cadê? Nisso na entrada do buraco veio Tio Nino. Sorria feito uma vara curta, oi-oi crianças, pilotando o carrinho de sorvete. Ninguém perto. De cara Tony arreganhou a fuça: é agora.

3. João se jogou nas pernas do Tio Nino, Derbinha puxou a cabeça dele pra trás, o figura berrando, era pequeno, do nosso tamanho, Toninho capotou no soco no filhodaputa, puxando ele pro chão pelos ombros, forte segurando os braços; eu voei no carrinho e peguei uns sorvetes de limão que descascava e metia na goela do vendedor – não, não, irmão do tio de vocês, parente, favor – grande, mas fraco logo caiu e logo tapei sua boca com os picolés, os olhos azuis se escancarando, apertei com gana seu nariz pra que não respirasse no que empurrava os sorvetes por sua garganta, o calor derretendo o limão, o rosto vermelho e vergado do sorveteiro entendendo tudo, olhei pra João muito compenetrado nas pernas de aranha sambando, Derbinha nervoso espancado pelo suor e só no Toninho vi um sorriso de mano, ele, Tio Nino e eu sacando tudo o que a gente fazia, uma coisa sem nome, escorregando pela minha cabeça feito a pasta de sorvete o que me deu uma vontade doida de falar, eu, que era sempre o que menos abria a boca, e cantei ADEUS ANO VELHO, FELIZ ANO NOVO e aí aconteceu outra coisa estranha e incontrolável, os músculos do afogando em espasmos de galinha sem cabeça, uns dez ou quinze palitos de picolé enfiados na sua boca não deixava de ser engraçado pra dedéu, e a gente riu dentes cariados numa gargalhada serpenteando carrosséis de vidros coloridos, um som alegre e fanho tipo um baleiro girando rápido, tudo se alongava em horas só que na real foi rapidinho que ele se engasgado no riso e no suco gelado de limão, ah, se fodeu.

4. No que demos com a coisa pras cucuias pulamos no carrinho catando os tesouros – picolés, dogues, porra, tava cansado de chupar sachê de ketchup; e a gente corria e gritava em volta do morto, chutando areia na cara onde um espanto saltava ainda, aquilo sim durou tempo, parecia pouco: a tarde chegou roxa e Toninho lembrou logo vai chegar gente de tudo que é canto pra festa da passagem, e o presunto? Num canto mais escuro a gente furou um buraco – antes disso Toninho fechou os olhos do tiozinho. Areia sobre, espetamos o guarda-sol do carrinho de sorvete no meio das pernas dele, feito o túmulo na sombra de uma flor gigante, porra, mãe, a gente sim sacava de poesia.

5. Levamos a conquista prum lugar mais agitado da praia; tinha ainda uma porrada de sorvete e salsicha. Os gambés nem vieram pra cima, tudo se desculpava na comemoração, povo se abraçava, se beijava, bebia, comiam, feito uns porcos mesmo. E caímos no mar revolto entre fogos multicores e estrelas e balões e velas queimando pedidos e gente que gritava, e molhamos nossos corpos felizes e saciados na noite calorenta: tinha que entrar um ano bom. Cansado, me deitei na areia, brancura deslizando nos dedos, em meu ouvido a concha e o oceano. O plano tinha girado: eu queria dizer alguma coisa pros meus manos; mas eles dormiam. Queria perguntar umas coisas; não sabia pra quem. Tem quem nasce morto, mãe? Sol nascia, roxo o céu lambido de verde – a praia e seus despojos da festa, um desconforto: dor de barriga, de garganta. Logo voltaria aquela merda de calor. Adeus ano velho.

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Verão, 1991.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 3:57 pm

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Nervos

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Eu só sei que quando a vejo
me dá um desejo de morte ou de dor.
[Lupiscínio Rodrigues]

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Arílton chegou e esguelhou a mulher largada de lado num fiapo de cama – sem coragem de encarar o corpo deformado de fome. Os ossos pareciam dedos apontando culpas, remoídas cobranças: olha o esqueleto em que você me deixou. Na lua de mel, ela tão diversa das mulatas bojudas do bairro, de brincadeira a apelidara “Miss Etiópia”; nunca minhocou que pudesse dar nisso. Pele e osso. O estômago comia-lhe a estima, auto e outra, desfazendo-se em lágrimas sem sal pela cara esquálida: você sabe o que é ter um amor, meu senhor?

Fechou a porta. Dormia a mulher, lombriga criada, sem força a puxá-la para fora do sono de sonhos órfão. Ele, seu homem, dos mundos que prometera só sobraram os cheques sem fundos. E um jornal amarelo tirado da camisa suja – o guia de empregos. Leu, revirou, mas suas mãos, totalmente inadimplentes, zonzeavam pelas funções das páginas sem achar uma rima ou sinal: maquinista, encanador, frentista, vendedor, balconista. Nada vezes nada, nisso era douto. A cabeça doía. Como sair, pé-rapado e carteira em pêlo, mendigar um trabalho? Incompleto o primário, boa aparência nem pensar, não era da idade certa, todos os documentos em desordem, parente importante ou amigos influentes esqueça. Arílton era uma ilha rodeada de zeros por todos os lados. E a fome lhe mastigando dentro. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher?

Uma barata ia passando – o único movimento na casa isolada de todos os domingos. Ia passeando a barata, tempos em tempos, antenando qualquer resquício comível. Inútil viagem. Olho no inseto, Arílton não lhe tinha nojo; antes, compaixão. O marrom ambulante lembrava os sapatos do casamento, lustrosos e promissores. Pois batera neles pelas ruas até arrancar as solas. O terno, vendeu. A aliança, empenhou. O bolo, arrotou. O vestido de noiva virara a cortina de uma vizinha. E até a barata foi embora, lenta, lateral, asas nos bolsos, envergonhada de entrar num lugar tão clandestino de pão. A casa voltou a ser suspensa. Você sabe? Por acaso você sabe?

Ajudante, auxiliar, assistente. Arílton cavava dentro de si mesmo, impávido destroço. Para que servia? Em suas veias só ralavam dízimas – e ainda assim, periódicas. Escriturário, vigilante, lixeiro, guardete, enfermeiro, garçom, motoqueiro, recepcionista, meio oficial pintor. Viveu até hoje foi de teima, de orgulho, de acaso. Seu fazer era um abismo. Seu mistério era viver em queda livre. Absolutamente livre? Ali, encompridada na cama, o y da questão, a esfinge de vidro, o espelho em que não fazia a barba toda manhã, delatando o perdedor em tempo integral, fracassado com carteira assinada.

Torneiro mecânico, técnico de processos, fresador ferramenteiro. Sem unhas, suavemente, quase espírito, suas mãos perseguiam um emprego feito barata atrás de resto. Guarda-costas, salva-vidas, bate-estacas. Não sabia até onde iria, até que porto agüentaria. O que o estraçalhava: entender como viera esse vexame. E por que ela nunca o abandonara? Por que sempre junto, acompanhando, enchendo seu prato de esperança temperada com fé? Ora, a fé! Fresador, cronoanalista, lemista, caldeireiro, sondador, clicherista, conferente, extrusor. Coisas que de tão complicadas perfaziam sua cabeça em fumacinhas. O rosto da mulher dormindo era a coisa mais linda desse mundo – isso ele compreendia, simples. Mas era uma boca. E vísceras, e miolos, e cabelos. Soltos numa enxurrada de maus pensamentos. Murchos peitos, miúda bunda, tísica buceta. Há pessoas que têm nervos de aço, sem sangue nas veias, sem coração. Mas você sabe o que é ter um amor, meu senhor?

Armador. Conciliador. Mandrilhador. Retificador. Desossador. Desossador. Desossador. Precisa-se, sem experiência. Mais nada. Sim. Isso ele era: toda inexperiência vivente. Ali havia uma ocupação! Conferiu a rua, o número. Perto, sem precisar ônibus. Ofereciam mínimos; bastava. Devia ser fácil, com um pouquinho de prática. Quem sabe ainda não enchida a vaga? Daria tempo. Olhou a mulher trêmulo, menino precisado de empurrãozinho. Correu até ela: avisá-la, inquiri-la, justificá-la. Em joelhos chegou-se, sem barulhos. Tocou-lhe as costas tão acarinhadas.

Frias. Gelada a mão. Duros os lábios. Duro, o corpo todo. O corpo todo osso – pronto para o desuso, para a última embalagem. A garganta dele partiu-se em duas. Precisava de um cigarro.

Abriu os olhos e a janela. Quanto tempo sem fumar um cigarro de seu próprio bolso? Por trás dos escuros, de fora e de dentro, nascia a lua cheia, imensa de dragões, alva. Pura. Perfeita – óssea.

Arílton assobiou ainda uma vez o velho samba que não lhe saía da cabeça – por que só lembrava do comecinho? – ; ele sabia. Doessem a cabeça, o estômago, o peito; mas isso, sim, ele sabia. Virou a mulher de frente, pernas e braços e olhos escancarados: pálida miração florada de veias roxas. Há pessoas que têm nervos de aço – ele era assim. Desossador. Devia ser fácil, com um pouquinho de prática. Alcançou a faca na pia. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?

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Inverno, 1997.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 3:51 pm

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Mistérios

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Para minha mãe, primeira leitora Somos nós garotas pequenas no espelho da caixinha de música, que para o voltear da branca bailarina de plástico em saia de gaze toca a “Pour Élise” [música que sei tocar no piano ganho de meu pai]; posso ver, abaixo das cortinas que também na noite quente dançam, a dentadura amarela e preta do piano, por trás dos meus olhos azuis através do espelho – e é como se ele nos quisesse devorar em tons menores, eu e eu, bailarina e bailarina. Porém, entre uma oitava e outra se interpõe o cinto metálico do meu pai.

– Graça!

Meu pai me nomeia não com a doçura ou uma certa vaidade como de sempre, nas vezes em que me ensina a tocar valsas, mas de um jeito que minha pele toda se arrepia, desde a nuca até o final da espinha; e tudo que posso fazer é virar meu pescoço – que parece estalar quando ele meu pai me dá um tapa:

– O que era aquilo que você escreveu no seu diário, hein, menininha? – Me levanta pelos ombros com suas mãos calejadas e precisas. – Sua menina suja! – As mãos dele têm pêlos pretos, como aqueles, arrepiados, de cima da boca de sussurro, um mustache de gato no cio; meu rosto parece uma floresta de pêlos vermelhos enquanto ele me empurra: – Você vai queimar o seu diário e é já, na minha frente, viu? Sua… Você contou alguma coisa disso para alguém? Contou? – Eu quero dizer que não, mas a minha boca treme e eu não consigo olhar para ele meu pai, os ouvidos explodindo com a contínua musiquinha, eu quero ser a bailarina, eu quero ser a – Contou? Você contou, né? – me sacode de novo pelo meu quarto de princesa cujo corpo não a obedece, eu quero falar – Fala! Fala pra quem você contou? – um bigode de retrato sépia ele tem, penso ao mesmo tempo em que meus ossos chacoalham sob os pulsos e só agora percebo-me nua vinda do banho distraída com saudade da bailarina presente de aniversário – Pra quem foi, menina imunda? Pra quem? – é sangue isso que sai da boca? outro tapa – Diz, menina, se não quiser apanhar de verdade! – me aperta e desembesta pra todo lado e eu vou fugindo de costas mas minha espinha só encontra atrás o espelho onde caio e me corto e me rompo até o corpo, meu maior inimigo, dançar uma valsa de choro e grito em que um calor de vidros me lambe e me lanha e então são só as mãos dele meu pai me pegando de novo agora leves desculpas – meu Deus, que loucura, o papai não quis – , enquanto a música e a bailarina cada vez mais remansosas. E detrás do abraço quente a verde tarde, lá fora.

Minutos depois estou sentada nesta mesa rodeada de plantas e seus cheiros de pássaros em vôos breves, a observar a drosera comer mais uma drosophila melanogaster. Sou eu mesma quem traz as mosquinhas para o almoço da planta carnívora aqui no escritório do meu primeiro emprego – escondida do seu Horácio, é claro, ele não se conformaria com o meu prazer em observar a planta em raiz de ratoeira e o lento trabalho de ressecamento a que o inseto é submetido até virar dois olhos secos. O telefone toca e eu atendo:

– A GPA Paisagismo informa: hoje, 20 de janeiro, é o dia do músico, do médico rural e de São Jerônimo. Bom dia. Seu Horácio? Quem gostaria? É de onde?

Transfiro a ligação para meu chefe, com voz atapetada – ele tem ouvidos de vidro – e volto a preencher, obstinada, as palavras cruzadas, meu passatempo favorito. Um lápis na boca e os dedos nos cabelos que uso compridos e lisos, último ciclo da lagarta? Seu Horácio aprecia gravatas borboletas sempre e quase tanto o mesmo terno cor de ferrugem que combina bem com o tom de seus solitários cabelos. Ele é baixinho e me manda toda vez que eu atendo ao telefone dar esse serviço de utilidade pública [como ele declama] de citar as efemérides e datas comemorativas todo santo telefonema, embora isso não tenha nada a ver nem a ouvir com esta firma. O telefone outra vez: é a voz de Geraldo, um cara do meu curso técnico de propaganda; então só digo mesmo

– Alô? Oi, tudo bem?

e ele me convida para a pré-estréia do filme Frankenstein, história que sabe que eu adoro. Um rapaz tão gozado e bacana, tem um tique de subir e abaixar a cabeça enquanto fala, e adora me contar lorotas; gosto mais dele pelo telefone [pelo mistério], apesar de ele ser bonitinho, lá do seu desajeito. Mas logo que desligo:

– Senhorita Maria das Graças, preciso lhe falar uma coisa.

– Sim?

– Percebi que a senhorita não informou há pouco as efemérides, que são nosso cartão de visita.

– Não?

– E já não é a primeira vez. – Hoje está de suspensórios. Olhos pequenos enviesados pela tartaruga dos óculos e mãos incríveis para avencas e orquídeas, como orgulhou-se a mim certa vez, muito bem assentado em seus sapatos de castanho verniz, Seu Horácio enquadra-me como se eu fosse capim. – Já não é a primeira vez que a senhorita tem esse lapso, tenho reparado…

Jogando ao ar estas reticências, coloca-me no coração uns pulos; minhas papilas secas e minhas pupilas acendem-se quando ele me dá as costas e pega o regador de alumínio, brilhante ao sol das vidraças abertas. Os suspensórios desenham em marrom um X por suas costas e seu olhar, ora refletido na vidraça dirigindo-se a meus olhos, ora demorado na samambaia em que ele asperge água francesa [suas plantas só bebem de outras terras], endurece-se quando ele me diz, doce:

– A senhorita está despedida. Justa causa.

Uma espécie de formigamento na nuca: os pêlos se eriçando, é o meu terceiro mês no primeiro emprego, o segundo ano após a morte de meu pai e a mensalidade do curso é para depois de amanhã. Vem um vento fresco da janela junto à mansa voz:

– Dia 20 de janeiro, dia da senhorita Graça esvaziar as gavetas…

Não sei por quê, penso no saco cheio de pobres mosquinhas, escondido na minha bolsa. No entanto, algum tempo após vários homens passeiam à frente de minha mesa transportando vidros longos e cheirosos de suor e massa de fixar, costas musculosas e fibrosas eles têm. Do outro lado da vidraçaria, no imenso galpão, o doutor Adolfo dá de comer ao seu mastim negro, acarinhando-o:

– Onde está o meu pretinho? O pretinho meu amiguinho? Meu amiguinho Bidu!

Alimentado o bicho, doutor Adolfo – um senhor muito enorme, gordíssimo de seu nariz adunco e profundos olhos gris e que se veste um tanto desleixadamente – me recomenda que devo melhorar a minha letra. Segundo ele, ela está

– Muito pouco caprichada. Quem sabe um pouco mais de treino, hein? É simples: é só tentar. O erro é o primeiro passo para o acerto. E o primeiro acerto é o primeiro passo para o sucesso. Não posso ficar entregando essas faturas com essa letrinha de criança! E olha que a senhora já está bem crescidinha… já procurou o professor De Franco?

Este último é de um curso de caligrafia; entretanto, agora não tenho tempo para essas coisas, agora que estou grávida e preciso fazer as roupinhas do Marcos. Meu chefe sai da loja para a rua distribuindo ordem aos seus comandados, que colocam as grandes lâminas luminosas na caminhonete. Fico só. Olho para o teclado da máquina de escrever elétrica na mesa do doutor Adolfo [ele gosta de ser chamado assim, embora não tenha passado do ginásio, como descobri] – e então meu olhar caminha pelo meu dedo médio esquerdo, calejado pela escrita de notas fiscais e faturas e duplicatas que secam pelo menos todo o azul de um dia de caneta. Sinto um seio estranho: parece algo grudando no sutiã; discretamente deslizo meu dedo pelo mamilo – minha mão esquerda retorna com cheiro quente de leite, uma gota, que eu chupo. Penso em fazer um pouquinho de crochê: abro a gaveta e entrevejo, meio aos novelos, uma velha revista do meu curso de propaganda. Fecho de novo a gaveta, desistindo.

Doutor Adolfo não quer que eu use a máquina de escrever pois acredita na força e na verdade da palavra caligrafada. Já eu acredito que teria grande prazer em pousar meus dedos naquele teclado, como pássaros descansam num fio de alta tensão meus dedos queriam fechar um pouco suas asas. Puxa, que interessante essa revelação caída sobre a mesa: um fio de cabelo branco. Deve ser o primeiro. Nesse momento, percebo que o doutor Adolfo, após despedir-se de seus homens suados, entra com muita dificuldade em seu grande carro azul de quatro portas, o mastim Bidu atrás, crivando de baba os banco de preto couro.

Distraidamente, acompanho o mover-se de meu chefe. Liga o carro; porém parece que ele se esqueceu de alguma coisa, e pára de repente. Abre a porta e prepara-se para descer – quando nota que algo o prende. Aguço a visão: uma ponta do cinto de sua calça se engancha com o cinto de segurança. Suando um pouco [como é gordo!], ele se vira – mas foi pior: a calça se enroscou de todo, doutor Adolfo puxa e não consegue soltar-se. Tenta se virar para um lado e outro e só o que acontece é se prender cada vez mais, a barriga já aparece por sob a camisa de listas sedosas, um peludo umbigo salta como um palavrão na tarde ensolarada, na tarde em que os homens trabalham e nada percebem dos percalços de seu patrão. Patrão que não oculta um enorme palavrão, eu posso vê-lo mas ele não, escondida que estou atrás do vidro fumê da porta. Na rua deserta, somente um caminhão de gás aponta na esquina, e eu começo a sentir pontadas por todo o abdômen; penso que deve ser o bebê, deve ser o bebê, minha barriga dói – enquanto que a de seu Adolfo, quer dizer, doutor Adolfo, explode em triunfo pelas dobras da camisa. Enquanto o cão late, doutor Adolfo xinga, rexinga e me chama, pois a caminhonete com os vidros já foi embora, ele está sozinho e precisa de ajuda; no entanto, meu corpo, tomado de eletricidade, sentada aqui a esta cadeira como se fosse elétrica, não há ninguém por perto e o doutor Adolfo berra Graça! Graça! Graça, venha já aqui! Serão chutes na barriga, o Marcos será um bom jogador de futebol?

Meu chefe se contorce e meu corpo envenenado por flechas estremece-se de queimações, lanças de mistérios e horrores frios, fazendo-me retesar os ouvidos para a música que os alto-falantes do caminhão de gás toca para anunciar sua chegada e é, música de Beethoven com 9 letras, muito popular, Pour Élise; Bidu, imaginando que é tudo uma brincadeira, late feliz, pula e lambe as costas do doutor Adolfo, que, preso pela bunda feito uma mulher do século XVII à armação da saia, joga-me através do fumê preto um olhar de ódio, eu não sei se deveria ir ajudá-lo ou fazer que não vejo e continuar acompanhando seu circo, só sei estremecer de terror, cair no chão, contrair-me, e então puxar o vestido, baixar a calcinha e escancarar-me, Marcos!, vou parir um monstro, vou parir, vou-me, perdida, perdida, perdida saúdo o mundo com minha substância mais profunda – onde foi parar o bebê? Não posso vê-lo com esse sangue todo em cima. Meu corpo encontra no galpão um espelho, no meio desse ar cheio de ventos como antes da chuva, mas eu não consigo de forma alguma compreender de que mulher são aqueles olhos azuis que me olham.

Outono, 1995.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 3:49 pm

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Labirintos

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para Halley e Ferreirinho

De malungo pra malungo.
[Nação Zumbi]
Down, down. Would the fall never come to an end?
[Lewis Carroll]

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Linguagem. Lino Curimbaba Capastrana era o doidinho da cidade. Diz que falava seis línguas diferentes, o que parecia mesmo, visto que ninguém o entendia e tampouco compreendia na cidadezinha línguas estrangeiras além de um dialeto do português chamado mineiro brasileiro. Lino Capastrana bradava a todos, solícito loquaz, que tinha a capacidade inaudita de pronunciar seu pensamento – sabe-se lá o que era isso – em português, inglês, francês, italiano, espanhol e alemão. Aprendera este sexteto básico latino-anglo-saxão no cais do porto onde trabalhara dez anos antes, em Santos. Só que ali em Jacutinga, cidade do sul de Minas – reafirme-se o óbvio, Estado brasileiro não banhado pelo mar –, nunca jamais alguém tivera notícia de ex-marinheiros, até porque filho daquele grotão Lino Capastrana não era: e ninguém saberia dizer de onde, posto que uma hora Lino outorgava-se cidadania gaúcha, outra hora pernambucana, e terceiras vezes amazônica, em seu sotaque incompreensível povoado de palavras sem significado aparente porém prenhas de intensidade e intenção, coisa que lograva sempre algum espanto entre os que se dispunham a ouvi-lo, logicamente na praça principal, que é a arena em que os loucos debatem-se com os toureiros da civilização.
Afirme-se, embora, a imprecisão em relação a seu verdadeiro nome: da boca de Lino entendera-se também os cognomes Lívio Carraspana, Landico Catamarã, Elíseo Catrapanni e Ladino Sacripantas. Certa vez, uma delegação de botânicos alemães chegou à cidade, trazendo alegria e pânico ao prefeito – alegria por ter a cidade sido descoberta pelo Primeiro Mundo e pânico pois ali ninguém dispunha de alemão suficiente para um cicerone. Dúvidas à parte, o pânico e a vergonha pela ignorância foram engolidos por Executivo, Legislativo e Judiciário de Jacutinga, e requisitou-se para receber a missão alemã ninguém menos que Lino. Banhado, cabelos cortados, barbeado, vestido em terno presenteado pelo presidente da Câmara de Vereadores, Lino foi até a estação rodoviária e trocou com eles várias palavras. Por dez minutos cercou a comitiva e o intérprete o alto escalão da pequena cidade, estufando o peito de orgulho por Lino, sempre tão eloqüente. Durou pouco a euforia: assentindo de modo respeitoso e profundo, os alemães apresentaram várias cortesias e mesuras a Lino, deram-lhe o braço e colocaram-no gentilmente no ônibus, para onde voltaram, seguidos pelos apelos inúteis e espantados do prefeito, do deputado e do juiz, que ficaram ali na plataforma vendo o ônibus sumir na poeira.
Ninguém nunca soube o que Lino e os alemães conversaram.

Lírio. A linda morena envolvida em um vestido roto, quase branco, de flores já apagadas, transparecendo os seios empinados, tocados pela água da tempestade que caiu certa vez durante a missa na igreja de Nossa Senhora das Correntes, em São Francisco, Minas Gerais, num mês de fevereiro, pedia-me carona até sua casa.

Ladroagem. Lembro-me do cachorro do amigo meu, digo, o cachorro dele, chamado Cliff, em homenagem ao falecido primeiro baixista do Metallica, um boxer pequeno, preto, grosso, que todos os dias, exatamente às seis horas da tarde, girava velozmente em seu eixo buscando comer a própria cauda – que lhe havia sido amputada.

Leis. Às onze da noite, a advogada Sabina, com seu sotaque do interior paulista forte, seu gosto por impressionistas, seus cabelos loiros curtos, seus olhos azuis e seu sorriso raro, descrevia à luz das torres da Paulista alguns tipos de ritmos que sabia executar ao tamborim.

Loira. A do Banheiro. Em minhas andanças, foi com grande surpresa que sempre observei a coincidência de existir em cidades tão distantes entre si – Recife, Cuiabá, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo – o grande mito urbano da Loira do Banheiro. Segundo relatos de pessoas de idoneidade comprovada, caso de meus colegas no Dom Bosco de Cuiabá, da churrascaria Galpão 35 de Porto Alegre e integrantes do bloco Que Sunga Horrível, de Olinda, entre outros, a Loira do Banheiro surge inapelavelmente quando você tem por volta de 10 anos de idade e sente surgir entre suas pernas aquela vontade incontrolável de pedir ao professor de Matemática para sair da sala de aula e ir até o banheiro despejar sua iconoclastia ginasiana, se não, logo fará nas calças, coisa que ninguém deseja, meninos ou meninas: assim que você baixa sua underwear, a Loira aparece, alta, longilínea, em seu vestido de noiva, o véu mal escondendo a imensa caveira sorridente, algodões saindo pelos buracos do nariz. Sem abusar muito da repentinez de sua monstruosa aparição, a Loira emerge para as trevas brancas do banheiro estudantil cerca de dois segundos depois – o suficiente para você se mijar na roupa inteira e ficar com a cara quente com o escárnio ao voltar à aula de Matemática.

Longe. Pelo retrovisor, preparando-me para dar a ignição na viagem para Aracaju, vejo uma réplica de Shirley Mallmann, loiríssima, de olhos azuis, camisa do Corinthians, esperando o ônibus que partiria de Monte Santo para Cansanção, Bahia, me olhando como se eu fosse o único que a poderia entender, ou que fosse digno de seu olhar espantado, ou que a pudesse levar dali, ou que soubesse da extrema dor em ser tão linda e ao mesmo tempo estar confinada àquele cafundó e ainda por cima ter uma estranha mancha vermelha do lado esquerdo da boca.

Labaredas. No sertão parece ser comum a existência desses doidos mansos com idéias fixas. Em Cordisburgo, cidade-natal de Guimarães Rosa, conheci três. Um era o Milheiro, Milionário ou Emiliano, quase centenário, que passava os dias encostado numa igreja contando a fortuna que amealhara – e que quando estava finalizando o montante de riquezas, apagava tudo e recomeçava, pois sempre se esquecia de incluir no cálculo uma fazenda, uma junta de bois, uma cristaleira da Boêmia. O Juvenal, Simonal ou Infernal, o segundo sandeu, era um sujeito que me confidenciara conhecer um dos “suspiros” ou “respiros” do Inferno, localizado ali próximo da cidade – ele se dispusera a me servir como guia até lá, para conhecer “ele” (não pronunciava nunca a palavra “diabo” ou qualquer sinônimo), e ver “as labaredas dançando” mas eu resolvi adiar um pouquinho mais esse encontro e disse que deixava para uma próxima vez, não tinha pressa. O terceiro doidivanas era o interessante Anteu ou Ateu ou Ateneu, um que volta e meia gritava “no princípio criou Deus o Céu e a Terra”: se você olhava pra ele, o Anteu o pegava pelo braço e lá vinha: “foi assim que começou a doideira do Doutor Hélio Mourão, é. O Doutor leu três vezes a Bíblia e piorou, foi: botou fogo na casa dele, saiu gritando que Deus não existe. Doutor Mourão desmalucou, sim. No princípio criou Deus o Céu e a Terra!”.

Existe uma crença bastante arraigada pelo norte de Minas a afirmar que quem ler a Bíblia inteira perde a razão, o que talvez justifique a estranha história do Anteu – que, aliás, na versão do Infernal, que tomava uma pinga januária ali do lado escutando tudo, aquele era o próprio Doutor Mourão, só que já tinha se esquecido disso. Podia ser verdade, uma vez que apesar de tido e varrido como louco, o Juvenal, Simonal ou Infernal era fonte segura para entender-se os meandros de Cordisburgo; conhecera, por exemplo, o frei Sefronias (descrito como frei Sinfrônio n’ “O recado do morro”, de Rosa), e dele contava sua cruzada contra as prostitutas da região e o hábito de amealhar o dinheiro das beatas em causa própria, descoberto quando de um incêndio na primeira capela de Jesus Menino, onde aliás foi batizado João Guimarães Rosa, em 1908.

Levitação. Uma mulher luminosa num metrô em Paris. Ela está indo trabalhar. Quando o trem pára na estação Châtellet-Les Halles, levanta-se e me sorri o sorriso mais bonito que eu nunca vi.

Lâminas. Assim com os demais, este louco de rua [pois há também os domésticos, a maioria] usa roupas que são a um tempo degradantes e distintas. São em geral ternos a indumentária preferida pelos loucos-novos do Brasil, pós-agrário agora que urbano, mas ainda semi-ágrafo. Ternos que ninguém mais quer; ternos que perderam sua condição original e tornaram-se duos, no caso de paletó e colete ou calça e colete ou calça e paletó, ou somente unos, no caso de qualquer um dos três elementos citados. Porém, em geral campeiam os paletós – escurecidos, amarronzados, esverdeados, acinzentados, amostardados, azulados, envelhecidos, puídos, rotos, rasgados, sujos, com partes faltando: em suma, é como se os paletós tivessem como que sido tomados por uma lepra e desistissem aos poucos de si mesmos, o que era seguido fatalmente por seus ocupantes, soltos corpos pela rua como se pausas em variadas tonalidades na pauta ou versos brancos na página. Assim como seu tecido, seu corte era variado e de diferentes modas, donde o “em pé de pobre todo sapato aperta” surgir aqui para nos fazer companhia, posto que são tão ou mais destituídos de dinheiro quanto de razão os loucos de rua [a condição essencial do doido nos nossos dias é rasgar cédulas]: este o motivo de os malucos andarem sempre fora de moda, ou adiante de seu tempo, ou ao lado, nunca dentro; os de rua nunca estão na verdade nela, aos que nos incluímos como a face luminosa da realidade.

Este louco em particular conheço-o da Vila Madalena, São Paulo, lugar tão pródigo em prodígios da psique quanto Cordisburgo, Minas Gerais, ou Caruaru, Pernambuco. De onde talvez tenha vindo este, que quase sempre está bêbado – o que não desmerece sua invulgar loucura. Quando não está bêbado, está louco, o que para uns talvez dê no mesmo, à diferença de estar um pouco mais inclinado e tranqüilo do que o habitual no primeiro caso e falante e veloz no segundo. E é sempre neste que o invejo. Para loucos, o seu padrão de vestimenta é um pouco mais elegante: nosso amigo dispõe de um raro senso de elegância, que o faz obedecer ao figurino matuto do sertão – qual seja, chapéu claro, paletó claro, camisa e calças claras e alpercatas ou mesmo pés descalços [a palavra claro, aqui, claramente trata-se mais de um esforço de vontade que exatamente uma descrição fiel]. Pois bem: ele, a exemplo do Atravessador, aprecia passar de uma calçada à outra sem olhar para os dois lados, o que faz com que nos espantemos e o quase atropelemos quase sempre. Quando isso acontece, é sua insurreição: ele volta-se por cima do ombro e grita “vagabundos!”, “hipócritas!”. Como deve ser bom para um vagabundo jogar este epíteto sobre outros! Existirá mais doce vingança?

Leilão. Detrás de um banheiro abandonado, ocupado por uma família de sem-teto, surgiu uma menina negra de corpo perfeito, chamando-me sorrindo para o sexo na deserta praia de Atalaia Velha, Aracaju, às duas da tarde, por cinco reais.

Lazer. Ainda com a tese que trata dos ternos que passam de louco para louco, lembremos do Atravessador. Metido em seu escuro terno cosido com a lã do Exército da Salvação [isso mesmo, super fashion], este personagem ostenta longas barbas negras e semblante fervorosamente confuso. Sua doideira consiste em atravessar correndo as avenidas Rebouças, Brasil e Henrique Schaummann, segundos antes do sinal abrir, relogianamente. Assusta-nos e grita.

Devo aqui considerar não poder afirmar com absoluta certeza sobre o período acima, no que tange ao conteúdo e à forma da doideira. Para mim, um leigo motorista congestionado ao sol do meio-dia [algo muito semelhante ao Étranger, de Camus], ele somente é isso, alguém que atravessa a avenida correndo e gritando. Mas o que virá dentro de sua cabeça? Imbuído de quais pensamentos ele pratica tão radical esporte? Em nome de que ele se abandonou, ou foi abandonado, à margem dos velozes automóveis? Como será viver eternamente por um meio-fio? Será ele, o que usa terno de lã do Exército da Salvação, uniforme oposto aos que usam camisas-de-força, o antípoda concreto dos que usam ternos de microfibras presos por cinto de segurança, ou será deles o anjo da guarda? Em que meio-fio conseguiremos demarcar a exata fronteira entre os mundos da calçada e da rua? Ainda acho que o terno do Atravessador terminará num brechó moderno de Pinheiros, sendo cotado por alto preço.

Lua. Loira de cachos finos, olhos violeta-escuros, tatuagens na nuca, no pulso e na saboneteira, sotaque de carioca, pele claríssima, vendedora de bijuterias em uma loja chamada Anéis de Saturno, fã de Pixies, sorriso enorme, passeia pela feira tendo debaixo de um braço um ramalhete de rosas e do outro um pastel de carne.

Lemingue. A monomania, ou obsessão, algo como colecionar borboletas, parece ser o traço dominante para descrever ou identificar alguns loucos, como já foi dito, embora reassalte-se nossa ignorância quanto à perfeita compreensão destes cidadãos de hábitos diferentes [puxando pela via politicamente correta]. O Holandês Voador da Bicicleta era notório por cruzar várias ruas da cidade de Caruaru soltando um grito fininho, irritante, meio de cowboy meio de sioux, meio de mameluco mesmo: arrastava com seu urro geralmente ladeiras íngremes e descidas vertiginosas, sempre pelo meio da rua, invariavelmente sendo escoltado por crianças e cachorros em sua temerária viagem. Chegou a atropelar um amigo meu. Dizem que morreu debaixo das rodas de um ônibus – o que não julgo mais suicídio menos que temer tratar-se de acidente de profissão.

Lapa. A pequena guia Maria Wesllyane, de Bom Jesus, Bahia, levou-me pela mão e derramou água sagrada da fonte oculta sobre minha cabeça.

Leite. Uma senhora em particular me chama a atenção: os da Vila Madalena nela colocaram o pseudônimo de Velha do Rio. Ela tem longos cabelos lisos cor de leite, a Velha do Rio; usa roupas bem-cortadas, completamente surradas, carrega vários sacos de supermercados com suas coisas, suas roupas, seus badulaques, sua casa. Fala desarticuladamente vocábulos refinadíssimos, com a intensidade dos aflitos que capturam as idéias com peneiras de pegar borboleta. Sorri. Densa e longemente ela sorri. E às vezes, no meio deste sorriso de medusa, agarra seus olhos e não larga nunca mais. Por temer tornar-me pedra é que somente consegui encarar seus olhos através de um espelho.
Estava no Bar das Empanadas e dirigia-me ao banheiro masculino quando notei que o feminino estava ocupado porém aberto. Era ela. Dispusera todas as suas coisas à roda da infecta pia, sabonetes, toalhinhas, escovas, pentes, presilhas, bijuterias, estojos de maquiagem, como se real toucador, burguês picichê ou requintada penteadeira aquele sujo lavabo fosse. Então parei à porta, encantado com a cena: a Velha do Rio passeando pelos longos cabelos brancos uma escova dourada. Sorria para si mesma, fascinada. E então, os olhos desta obscura mãe de cavalos alados me tocaram.
Neles, não havia nada. Ou não haveria nada em mim?

Leão. Alma, alta e loira, sorriso e olhos estranhos, à beira da loucura, bunda pequena e seios belíssimos, Rimbaud, Doors e maracatu, me pede pelo amor de Deus mais um copo de vinho, só mais um.

Licantropia. Existe, em ruas próximas à estação Lapa de Baixo, um louco que passa os dias a andar pra lá e pra cá murmurando coisas como “eu quero que ela vá pro inferno!”. Usa camisetas que estampam propagandas políticas, em geral de candidatos governistas. Penso que ele deve ter aflição por pêlos pois sempre raspa a cabeça e fica passando de leve os dedos pelo couro cabeludo, como a certificar-se de que está mesmo careca. Por isso mesmo, paradoxalmente carrega o apelido, dado pelos taxistas e perueiros que infestam a área, de Cabelo. Ultimamente tenho visto a acompanhá-lo o Neguinho, rapaz jovem, de compleição nada frágil, inalterável vestido com uma calça jeans, botas rasgadas, camiseta preta e jaqueta de plástico preta, a catar piolhos eternamente sorrindo, a catar bitucas eternamente chorando, sem nunca ambicionar qualquer trocado dos passantes da estação Lapa de Baixo. Tem os olhos mais tristes, ou nostálgicos, que já vi. Parece tomado por uma saudade quase que completamente – saudade que não parece ausente nos murmúrios do Cabelo.

Desde que coloquei o olho nos dois, notei, com alguma preocupação, um súbito aumento no número de cachorros que invadiram as ruas da antiga vila inglesa que margina a estação – comum notá-los, no entanto, à noite, quando saía do trabalho; de manhã e de tarde, eram o Cabelo e o Neguinho que meus olhos-de-carrocinha caçavam. No verão, em noites de lua cheia, pude constatar uma certa mudança nos ares e gingares de algumas moças que passavam pelas ruas da Lapa.

Lente. A sombra de Bonita – olhos verdes gigantes, tatuagem perto da bunda e piercing no umbigo, seios pequenos, senso de humor, forró, moda e Björk – escovava os dentes de Bonita na parede do corredor do Divan.

Limbo. Muitos devem conhecer o famoso Piauí, um dos loucos-símbolos da USP. Conheci-o quando, em seu segundo ano de História – contrariamente aos que defendem a tese de que ele cursava Filosofia – dera para fazer discursos à frente da lanchonete. Não parecia de Piauí, pelo sotaque paulistano carregado; nunca atinei com a razão de seu nome de guerra. De saída, de sua tribuna imaginária, ele mostrava apreço a idéias – o evolucionismo de Darwin, o amor solidário de Cristo, a ciência transcendente de Einstein, o horror visionário de Hitler. No terceiro ano, flagrei-o já em plena metamorfose: de continente, ele passava a próprio conteúdo – ele era as personalidades. Mahatma Gandhi às segundas, Karl Marx às terças, Albert Einstein às quartas, Platão às quintas, Sigmund Freud às sextas. Chegou a fazer um certo sucesso: presenciei-o ser aplaudido muitas ocasiões. Às vezes culminava seu discurso com um apocalíptico “está chegando!”. Quando notava alguém rindo, rodeava as cadeiras e mesas velozmente, dançando sobre um pé só. Nesta época, ainda tinha um emprego fixo – vendia livros num dos sebos. Inseparável de seu casaco preto e seus óculos redondos, marcas registradas [uma das lentes estava pintada com uma espiral vermelha] – talvez por causa mesmo do casaco tenha sido preso. Ele saía da biblioteca da Letras quando foi abordado pela curiosidade do bibliotecário: sob o casacão, estranha vestimenta num verão absurdamente quente, descobriu-se uma Divina Comédia em italiano [uma das jóias da Letras], um preservadíssimo Capital e um obscuro Tratado da Apropriação Indébita. Encontraram em seu armário vários livros roubados da biblioteca, com o carimbo da USP pintado furiosamente de preto.

Encaminhado a uma clínica, dela saiu um ano depois. Já propunha-se em uma fase mais elevada: de sua boca, explodiam verdadeiros debates metafísicos entre Goebbels e Freud, Jesus e Nietzsche, ou mesmo a várias vozes, como a inesquecível briga que travaram em seu espírito Sócrates, Sartre e Fernando Henrique Cardoso. Recolhido novamente – estava ficando muito violento, despejando cerveja nos estudantes – voltou há dois anos [já não estuda há três]: reduzido a um estágio onomatopaico, gira grunhindo em volta das mesas e cadeiras fervilhadas de professores e alunos, que às vezes lhe oferecem um cigarro. O que virá depois?

LSD. Amapola, que fala alemão, atriz do Antunes, Cowboy Junkies, miúda quase anjo, piadas diabólicas, cabelos finíssimos e drogas em excesso, num bar da Vila Madalena contava-me uma história de Cortázar na verdade escrita por Borges.

Lógica. Uma família que conheci na Casa Verde: eles se reúnem todo domingo, à hora da ave-maria, para escutar um LP do Ary Toledo. Pai, mãe e casal de filhos escutam laboriosamente os dois lados do LP, que totalizam 40 minutos de piada na voz calorosa do humorista, totalmente em silêncio. Terminada a audição, retornam aos afazeres habituais do domingo. Isso tem acontecido todo domingo, religiosamente às seis horas da tarde, há muitos e muitos anos – continuarão fazendo isso até que morram, ou que o disco risque, trisque, quebre, ou a luz termine.

Literaturas. Daniela, nariz um pouco grande e delgado, levemente suspenso na metade do caminho, adornando boca de lábios longos e finos, no rosto duro, traços angulosos – talvez russos ou poloneses ou ciganos –, olhos azuis que mudam de tamanho e cor dependendo do humor do céu, debaixo de cílios que levitam em nossa direção, testa alta, pele de sulfite, cabelos lisos castanhos, atenta ao professor como se este fosse uma divindade. Mas, na verdade, ela mesma era divinal e não sabia – o que afinal é próprio a seres que habitam as alturas.

Laços. Em Caruaru, Bombinha e sua mulher Mudinha. O homem mais elegante da cidade, estilo Waldick Soriano, chapelão branco e gigantescos óculos escuros, Bombinha carrega sua mulher, vinte anos mais velha – ele tem uns 60 – pelas ruas: ela, flores nas mãos, de pé numa plataforma com rodinhas, ele puxando o carrinho por uma corda. Presas à plataforma, latinhas de refrigerante e cerveja amarradas por barbantinhos vinham batendo e anunciando vossa passagem. Às vezes as crianças jogavam arroz sobre eles. Vivem há décadas do dinheiro que as pessoas oferecem. Uma vez Bombinha ficou bêbado, deitou falação ao mundo, gritou e tirou a roupa, veio a polícia e caiu em cima de porrada; o delegado ficou sabendo e mandou todo mundo em cana – Bombinha ganhou terno novo e muitas desculpas. Sei lá por que tinha esse apelido: já era assim quando vi os dois. Necessário muitíssimo respeito. Em Caruaru fossem dois santos. Mudinha sempre vestida de noiva, tiaras de mandacarus, estrelas nos véus, anáguas aparecendo. Bombinha não desgruda dela, da cartola e da bengala, anônimo capitalista – acha Mudinha a mulher mais linda do mundo. Se era bonita? Ele era doido, ôxi. Bombinha passa os dias limpando religiosamente as lentes de seus óculos, para que muito raramente se vejam seus olhos lisos, blasés. Cordial, cumprimenta ao povo tirando a cartola, nunca pede esmola. Parece que aceita dinheiro e comida por piedade aos outros – superior que é. Só ele entende o que ela grunhe, só ela entende o que ele fala.

Outra vez foram convidados para uma comemoração de um sujeito rico, em Recife. O sujeito gostava tanto dos dois que mandou-os virem para a festa de debutante de sua filha. Ficaram hospedados num hotel na praia de Boa Viagem. Dia seguinte, a atração local: Mudinha na praia chegava muito perto do mar; Bombinha lhe dava broncas, “queres morrer, é, galega?” O povo na praia parou pra ver e rir dos dois doidos. Gargalhavam com Bombinha cuidando de Mudinha feito ela sua neta-avozinha. Só eu não ria, só num canto da praia, porque tinha respeito – em Caruaru rir deles era a mesma coisa que fazer malcriação. Ficava olhando pros dois e pensava que era uma fuleiragem rir, feito ver uma rapariga cega de perna aberta.

Antes de dormir, sempre imagino príncipe Bombinha levando Mudinha, ereta e altaneira como rainha, para passear. Eles dois não eram um casal: eram sim uma procissão, uma prece; delicados feito flores e vento. Só lembrando deles é que consigo dormir.

Latim. À beira da Linha Verde, litoral de Alagoas, uma garotinha me deu uma bronca ao ver que eu não sabia abrir um buraco em um coco; olhando-me dura nos olhos, empunhando o facão do pai – que devia estar bebendo e que não tinha dinheiro para colocá-la na escola [o sonho da menina era ser escritora, segundo me confidenciou depois] –, ela cortou o coco de um só golpe.

Luz. Tem também aquele maluco da estação Luz do metrô. Um velho pedinte que usa um paletó de couro e um gorro de lã na cabeça que só lhe deixa à mostra os olhos muito azuis e penetrantes e um nariz bastante adunco. Sempre que o vejo, penso que hoje é dia de seu aniversário. Tem cuidados extremos com a vaidade, como o atesta seu paletó brilhante como se para um baile estivesse vestido – na lapela, um lírio, um cravo, às vezes uma avenca. Não morará ali na plataforma, contudo é sempre ali que o encontro, pois nem mesmo em nenhuma outra estação o vi. Ele passeia por entre as pessoas que entram e saem, estica a mão precisamente para uma, olha fixo-azul para seus olhos e pede um trocado sem falar nada. Escolhe as pessoas como se as pescasse, não parece às cegas: tem intenções determinadas para com um alguém especial entre todos, como se existisse um contrato previamente estabelecido entre o pedinte e o benfeitor, ainda que este recuse-se a conceder a paga. A estação fica no bairro da Luz, uma das regiões mais degradadas de São Paulo, em cuja geografia recortam-se as fronteiras da Cracolândia, sede mundial de menores e maiores viciados em crack. Por este motivo, os alto-falantes bradam, a intervalos conseqüentes às paradas do trem: “não dê esmolas! Não estimule a mendicância!” Algumas pessoas acreditam nessa voz, outras não. E é delas que Luz – vamos nomeá-lo assim – recebe suas moedinhas, para comprar sabe-se lá o quê. Já peguei-o várias ocasiões assoprando uma língua de sogra. Já o vi diversas vezes dançando, levando invisível dama pela plataforma vazia, lentamente, cadenciado, rodopiando perigosamente com os olhos fechados à beira da linha. Talvez, ao contrário do que me ocorria, ele não morará nas imediações da estação, mas sim dentro dela própria. Mesmo na própria plataforma. Pois talvez ele somente more ali para meus olhos, toda vez que vou à estação da Luz, observando o trem do metrô como um rio, que lhe trará benesses ou a seca, ou a cheia, nos intervalos da festa para a dança. Pois é este trem o rio que corre por sua aldeia, e sua aldeia é o mundo. Em sua absoluta solidão de aniversariante – afirmaria mesmo, por trás de seus olhos frios, encontrar uma compaixão pelos outros seres solitários da grande barca que atravessa esse rio, que desaguará em outros, e quem sabe chegue a algum oceano, ou banhe algum seco solo.

Mas o importante é cuidar daquele porto, e daquele rio específico, que, idêntico a si mesmo sempre, jamais banhará duas vezes a mesma pessoa. Então o tempo de Luz é o tempo do rio. E uma vez que é eterno, todo dia é dia de seu aniversário. Ele é o rio – o rio que faz aniversário, solitariamente leito, lápide e lâmpada.

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Outono, 1998.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 3:48 pm

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Invisível

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Para Joana, quase

Quando eu era pequeno eu tinha um amigo invisível. Você sabe, por volta de uns cinco anos, quando já se aprendeu a falar a gente já consegue inventar ou contar uma história, coisa comum a crianças dessa idade, e o meu amigo se chamava Sandiliche. Engraçado, não é? Acho que era porque a gente só comia sanduíche nessa época; pelo menos é o que minha mãe diz como explicação para esse nome esdrúxulo. Eu falo da minha mãe porque ela é quem me conta muitas histórias do tempo que eu era menino. Coisas de que a gente nem se lembra mais. Assim, eu vou me recordando do Sandiliche pelo pouco que ficou de restos de sua figura invisível na minha memória, além do que minha mãe me conta, divertida, talvez aumentando um pouco aqui, eu subtraindo ali, até formar a pessoa desse amigo que eu tinha, o único, pois morava num prédio e as outras crianças me olhavam como se eu fosse um estranho.

Mas eu nem ligava, porque Sandiliche e eu éramos inseparáveis e explorávamos todo dia os arredores do edifício: os jardins, os corredores, os elevadores, as escadas, as garagens, os brinquedos da área de lazer. Eu e meu amigo, por exemplo, ficávamos horas na gangorra, eu aqui e ele ali, aí bem na distância que você está de mim, subindo e descendo. Quando anoitecia, era a hora de voltar pra casa, eu chegava contando para minha mãe hoje o Sandiliche me disse que vai viajar pros Estados Unidos, ou então hoje ele disse que não vai mais porque ia se sentir sem graça não tendo companhia, ou então hoje o Sandiliche ganhou um carrinho com controle remoto do pai dele mas não quer me mostrar porque tem medo que eu quebre, olha só, mãe, isso é coisa que um amigo diga? Minha mãe ria e falava que era assim mesmo: quando a gente ganha um presente não quer dividir com ninguém; depois, quando enjoa, a gente brinca junto e é até mais divertido. Lembro que me irritei tremendamente com isso, como é que pode um amigo nosso só querer emprestar um brinquedo quando está cansado dele? Tão furioso fiquei que acabei brigando com meu amigo. Ele não entendeu bem, mas deixei de descer durante uma semana, de tanto ódio. Um dia, voltando da escola, encontrei-o sentado no cavalo de balanço e ele, com aquele jeitão de sempre, olhando de lado, feito eu não fosse grande coisa, porém um sorriso se entrevendo em sua cara bonita, mexendo no cabelo encaracolado, metido arrumado dentro do uniforme azul, eu desengonçado em meu uniforme marrom. Ele me chamou, riu, e disse que o brinquedo era uma droga, que o pai tinha sido um idiota de dar pra ele um brinquedo tão ridículo como era o carrinho de controle remoto, muito mais legal era brincar comigo. Aí foi que fizemos as pazes apertando as mãos como fazem os grandes cavalheiros, os grandes amigos, e fomos brincar de cientista.

Eu tinha um microscópio mas era sempre o ele quem descobria os usos mais bacanas – enxergar o olho de uma formiga, a parte de dentro de uma minhoca, a asa multicolorida da borboleta, e desde essa reconciliação não tivemos outro problema. Até que Sandiliche veio com uma história de uma menina da escola dele chamada Juliette, que era bonita, de olhos verdes e cabelos pretos lisos lisos, quase até a bunda, que era francesa e rica e coisa e tal. No início achei interessante, ficava imaginando como seria a menina, perguntava dela e ele me dava detalhes entusiasmados. Daí comecei a achar tudo muito chato, o Sandiliche não queria brincar, só ficava falando dela! Um saco mesmo, cheguei a reclamar com minha mãe. E ela riu como da outra vez, falando que na vida é assim mesmo, a gente passa a gostar de uma pessoa e só consegue pensar nisso, mas depois passa, perde a graça e os amigos se cruzam de novo, o outro até reclamando da menina por quem foi apaixonado. Isso me tranqüilizou, eu agora conseguia agüentar a conversa fiada do meu amigo porque sabia, lá no fundo, que aquilo não ia terminar bem e que a gente voltaria a ter a amizade de antes, amigo de brincar direito e não só ficar falando de paixão.

Essa certeza eu nunca falei para o Sandiliche, o que me fazia muito superior a ele. E quando ele ficava lá, todo se sentindo o sentimental dos suspiros, eu não levava a sério, ria por dentro e inventava as brincadeiras mais inconseqüentes só para irritá-lo [como dar nó no rabo de um gato que zanzava por ali, ou furar o pneu de algum automóvel do prédio, ou dar trote pelo interfone do elevador]. Daí ele ria e gargalhava porque era o tipo de sacanagem que ele fazia antes de conhecer a Juliette e virar um romântico. Tanto eu fiz pra chamar sua atenção que fizeram uma sindicância no prédio e meus pais receberam uma multa: minha mãe brigou comigo e não queria saber de minha explicação de que o Sandiliche estava impossível assim por causa da Juliette. O pior aconteceu quando um dia, perto do Natal, meu amigo ficou sabendo que a menina ia lá no nosso prédio visitar um tio e quis impressioná-la com uma brincadeira bem grandiosa, feito um presente, só pra que ela visse como ele era o bom. O que ele fez eu fiquei sabendo só depois: ele deu um curto-circuito na instalação de lâmpadas na árvore de Natal do nosso condomínio, fazendo a árvore pegar fogo e provocar um incêndio em todo o jardim, quase queimando umas crianças que estavam ali perto. Isso foi demais! Quando eu cheguei da escola já estava tudo em pleno fogaréu. Era lindo ver aquelas chamas comendo os jardins e a árvore, até gasolina o Sandiliche botou na instalação para que a fogueira ficasse bem viva e impressionasse Juliette – o problema é que quem acabou se impressionando foi ele mesmo, que sofreu uma queimadura de uma lado do rosto, de leve, que deixou no entanto uma marca bem feia. Nisso, apareceu polícia e bombeiros e o diabo, a maior confusão, tão grande que o Sandiliche só desceu para brincar comigo depois do Ano Novo. Com um curativo enorme na cara, muito chateado, dizia que por causa do incêndio teria de mudar de prédio, ir para uma escola de crianças diferentes, como a mãe disse. Aquele seria o último dia em que nos veríamos. Mas antes que ele se fosse queria me dar um presente: era o controle remoto do carrinho que tinha ganho do pai, o carrinho não me dava pois era pra me a gente continuasse ligado. E eu chorei, e quis também lhe dar um presente – a lente do microscópio em que víamos as formações moleculares do nosso cuspe e do nosso sangue, só a lente. Ele chorou também, até molhar o uniforme azul. Então apertamos as mãos como grandes cavalheiros, grandes amigos, e cada um foi para sua casa. Eu não saía do quarto, minha mãe vinha me encontrar em lágrimas com o controle remoto na mão; decidiu que me faria bem mudar de escola, outros ares, até mesmo nos mudamos de bairro – e nunca mais vi o Sandiliche, somente de vez em quando sonhava com ele, sentado sobre o branco cavalo-balanço, ou então grande e terrível tacando fogo nas árvores de Natal da cidade, ou então tendo os cabelos acarinhados pela menina que ao mesmo tempo ria de mim.

Tempos depois, mudei-me de cidade, fui crescendo, ficando mais velho até ficar velho, e esqueci do meu amigo invisível, só me lembrando quando vou visitar minha mãe e ela me fala do tempo em que eu era pequeno. Mas é raro eu visitar minha mãe, agora que me formei e saí de casa e tive amigos e namoradas e me casei, por coincidência com uma francesa chamada Juliette, engraçado, não é? Também tive filhos e eles cresceram, tanto que eu e ela ficamos sós e nos mudamos para outra casa. Foi justamente nesta mudança que encontrei toda essa lembrança de meu amigo invisível que estou te contando, e vim para cá pensando nele: se ele, por exemplo, ao sair de sua escola invisível fosse para outra cidade invisível, e crescesse invisível e tivesse outros amigos e amores invisíveis e esbarrasse um dia com um presente dado por um amigo aí sim visível, o que o faria tornar-se também visível e sair triste de casa, sua casa a lhe prender com transparentes tarefas cotidianas, e viesse caminhando, segurando com cuidado o presente, e tentasse esquecer de sua vida bebendo e lembrando a uma outra pessoa, desconhecida, a sua história escondida, e depois de vários sanduíches e copos no balcão se pusesse a acariciar a própria face com o brinquedo, um simples controle remoto velho no fio de uma quase oculta cicatriz, e olhando do outro lado seu interlocutor sorrisse lembrando-se de que, depois que dera a seu amigo invisível uma invisível lente de microscópio, ele jamais pudera ver-se de novo, e nunca mais fora o mesmo.

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Primavera, 1995.

Written by rbressane

fevereiro 23, 2008 at 3:37 pm

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História em cicatrizes

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Para os Brescianni, Bresciani, Bressani, Bressane…

Avelino vela o touro. O miúra mira Avelino. Olhos azuis diminutos versus grossos olhos pretos. A arena é uma clareira em meio a uma mata cerrada, território de onças, fogos-fátuos e mulas-sem-cabeça; dois ou três capiaus formam a platéia. Ereto ao centro, o homem mostra o queixo quadrado de soberba, um bigode escorrendo negro-brilhoso semicircularmente pelos cantos da boca; no céu, em meio-dia ofusca o sol; a dez metros, o touro negro abaixa a enorme cabeça exibindo orgulhoso seus raios lunares. Num desejo de ajudar Avelino, a assistência movimenta-se, nervosamente. Sem olhá-los, Avelino sobe o braço esquerdo perpendicular, como que afastando-os; volta-o à cintura, onde, enrolada, está a corda, laço já preparado. O touro bufa. Sob o chapéu, o couro cabeludo de Avelino eriça-se e se irrita pelo calor; empelotada de suor é a aberta planície de sua testa.

Do outro lado da cintura está o Smith & Wesson calibre 38. Soerguendo-se nas patas traseiras, o touro, que recém abandonara sua condição de novilho, inclina ainda mais o pescoço para baixo, olhos alteados; e resvala duro no chão seco uma pata à frente. Avelino decide desprezar a corda: ergue os braços feito portasse uma capa; mas então, lentamente, estrala os dedos, assopra as unhas, e suas mãos tomam a curvatura dos chifres. Ele sorri para o touro. Como num convite para uma dança.

Novamente, o touro bufa. Avelino sente todos os músculos do corpo tensos. Arregalam os olhos, os capiaus. Ouve-se um sussurro: – vem! O touro bufa. Grande. Os dentes de Avelino refletem o sol.

Cicatrizes são uma forma de escrita, e, portanto, de mentira. Dizer cicatriz é pronunciar sangue estancado, acicate sem fio, bissetriz da memória. Cicatrizes rasgam a história de um corpo em dois: antes e após. São como rios na densa geografia de uma pele – vertem narrativas.

Encurralar esse touro foi uma dificuldade. Escapara da fazenda dos Garcia e desatinado desembestara pela viela do Ferrabrás. Um corisco preto, sem eira nem beira por aí, que perigo. O jipe de Avelino teve de ser abandonado no caminho, pois um pneu furou e o homem quase rolou uma pirambeira. Ele ia ficar a pé, não fosse o auxílio duns matutos que deambulavam por ali, os três num só cavalo, muito pangareado, aliás. Vendo-lhe a autoridade no fio do bigode, os três coitados desencavalaram-se e Avelino subiu na montaria, a qual, desacostumada a chutes no ventre, pôs-se a galopar doida feito nunca. E o touro já se fez visível no horizonte de ipês-roxos e flamboyants.

O sol ardia. Avelino possesso com o bicho fugindo ao controle. Gritava com o cavalo, gritava com o touro; atrás, as três sombras o acompanham correndo, temerosos com o patrimônio. Um cansou-se, ao ver que o touro entrava numa picada, e parou. O homem raivoso sobre o baio catou de um facão na cintura e tirava faísca dos troncos das árvores, tanto se espantava: mas que bicho é esse que corre tanto assim? A-la-pucha! A floresta fechando-se, úmida e fria, num labirinto, o cavalo se esfarrapando, Avelino saltou. Começou a seguir o touro pelo barulho das patas e da respiração, lembrando preocupado da natureza dos miúras de levar seu perseguidor para caminhos fechados – como florestas e desfiladeiros–, para daí o surpreender com seus cornos cruciais. Por um segundo temeu que o frio na testa fosse medo; afastou a hipótese como se mata uma mosca. E de repente encontrou-se numa aberta clareira de uns vinte metros de diâmetro, com árvores circulando altas o terreno. Tudo ficava muito escuro. E tudo muito claro: do outro lado, o touro a fazer-lhe sala. Avelino cuspiu a exclamação, para assombro dos dois ou três capiaus: – cazzo-al-culo! Vou te derrubar na unha, seu filho duma putana.

O menino, que – sem querer – pegou a mãe desprevenida saindo do banho, deu de olhos com a cicatriz grosseira, em meio-círculo, formadas por inúmeros ziguezagues feito um zíper curvo, e sonhou com a lua crescente. Na manhã seguinte teve febre e não foi à escola. Cercado de mimos da mãe nos cabelos finos, perguntou qual o motivo do rabisco na barriga. Uma facada? A mãe riu-se:

– Não, filho. Foi quando eu tive você: fizeram um corte na barriga e você saiu por ali. Aí, ficou a cicatriz. – E desta maneira o menino aprendeu o que queria dizer a palavra.

Um tempo mais tarde, os olhos perdidos na trama da novela, a mãe tinha suas mãos nas do filho, que brincava de ler o destino, um livro mágico aberto ao lado. Deparou-se com duas linhas finíssimas que não estavam no mapa do livro-guia – estavam cada uma em cada pulso. Riscos sem explicação: o que eram?

– Depois eu conto – a voz da mãe saía sinuosa e lisa. – Agora estou vendo a novela.

Após a novela a mãe foi cuidar da janta do pai, que somente chegaria às três da manhã, falando alto e trazendo um estranho cheiro para casa. O menino caiu no sono e lá embaixo sonhou com a lua crescente, polida como se a tivesse cortado uma espada, como se fosse a própria espada. Acordou com febre. Mas foi à escola, pois gostava da aula de educação física.

Um miúra reprodutor nomeado Paz E Sossego pelos peões da fazenda [paz e sossego eram cada um dos testículos], o touro formava parte do dote do casamento de Avelino com Francisca. Um espanhol escuro, de secos modos, magro falar – o futuro sogro -, Dom Ernestino, como era chamado, queria ver se era mesmo verdade que Avelino tinha aquela habilidade no laceio, e se era macho de, como falavam, pegar um monstro desses.

– Não vou desapontar o senhor – foi a voz que escapou do peito de Avelino, garboso sob a camisa impavidamente branca. O miúra urrava, escoiceava e arremetia contra as grades do cercado de onde saía apenas para a paz e o sossego de quantas se dispusessem a esposá-lo. Comentários surgiam, de um que outro matuto, de que era preciso cortar-lhe sem demora os bagos: senão nasceria um assassino, de seu couro um verdadeiro belzebu. Suas patas já haviam feito cascalho das costelas de um desavisado que resolvera montá-lo; imagine o que seus chifres não poderiam realizar.

– Como é, carcamano? – os olhos do espanhol brilhavam. Por seu lado, a pequena Francisca, versão feminina do pai, espiava o terço. Ambos sentavam-se sobre um tronco derrubado, de fora das cercas.

No estábulo, morrendo de calor, relinchavam os cavalos. Avelino cofiava o bigode e sorria. Pegou a corda, pulou de cima da cerca e andou cinco passos. Dom Ernestino levantou-se, sério, deu a volta na cerca A filha permanecia metida dentro do vestido de algodão branco que descia até seus tornozelos; recebeu um olhar de Avelino, mas a reza dominava seu rosto de cima para baixo. Nas mãos do homem de olhos azuis desenhou-se um laço perfeito. O espanhol gritou: – vai! – e soltou o touro.

Inversamente, o touro nem trelou para Avelino: pegou a esquerda e disparou pra cima de uma cerca de pau d’arco, que, sentia-se, estava um pouco solta. E galopando, virado cavalo, desaparecendo-se.

Os dois homens o contemplavam inertes quando Francisca levantou-se, assombração branca sob o sol de esporas:

– A última vez que ele fugiu, foi pras bandas do Ferrabrás. – Então Avelino nem esperou explicação: pulou para o jipe e colocou-se a caminho. Imerso na poeira levantada pelo touro, que lhe dourava as faces, e observando pelo retrovisor a maligna e dura expressão do casal pai e filha, parados os dois, teve a impressão de que aquilo não podia estar acontecendo com ele, era como se fosse um sonho.

São, sobretudo, bem-vindas as cicatrizes: pois ninguém planeja passar a vida com uma ferida a céu aberto. Dividem as pessoas, esses riscos que avançam a epiderme; por vezes são horrorosos e nojentos; outras, atraentes e charmosos: tombos de bicicleta transformam-se em heróicas lutas contra o garoto mais forte da rua. As cicatrizes ensinam, atemorizam e prevêem. Para um masoquista, a cicatriz proveniente de uma escarificação voluntária constitui-se numa nova zona erógena. Para um lutador, quanto maior o número de cicatrizes maior a qualidade do orgulho por sua coragem; pois, se é verdade que o que não mata deixa mais forte, quanto maior a quantidade de aberturas no corpo maior a confiança em crê-lo fechado.

Ser noivo era algo em que Avelino jamais havia pensado. Casar! Dizia aos amigos que era o mesmo que trocar ferros com alguém quando vai a lua nova. Uma parvoíce, uma estultice. Exemplos não faltavam.

A mulher do Abreu, pega pela mulher do Ambrósio, na cama do Ambrósio, toda arreganhada com o referido sujeito. Pensou-se em prendê-la por adultério, mas lá se foi o chifrudo Abreu sussurrar ao xerife um perdão de Cristo.

– Desta água não bebo nem que me afoguem – e Avelino virou mais um copo de pinga, ensolarado pelas risadas dos companheiros e pelas zombeteiras modas de viola.

O Dimas do açougue era outro disgramado. Embora fosse ele quem desse em cima das freguesas – e volta e meia levava uma zinha pro abate, no mato do Ferrabrás -, isso até se desculpava, em virtude da sordidez desmilingüida de sua mulherzinha Raquel. Mas era um tal de boquejar pras vizinhas que o marido isso e aquilo, que os cotovelos da mulher já estavam até cascudos de tanto esfregar no parapeito da janela; a casa, ficando pras baratas e os filhos, pro beleléu – ela só se preocupava em arranjar assunto fiado. E o sonso, de remorso por sua safadeza, procurando se mascarar com boa figura, cobria-a de rendas e jóias e vestidos que não podia comprar. Sua culpa, sua multa. Onde começava um vício e onde se enfiava o outro?

– O homem nasce, cresce, amadurece, fica bobo e casa – Avelino estalou a língua noutra branquinha. – Eu, em mim, ninguém põe arreio.

– Mas ô Arvelino – atalhou o da viola, sem aquietar os dedos – e filhos?

– A-la-pucha! Disso o mundo já deve de estar cheio. Digo por mim. Quem é que precisa casar pra isso?

– Ah, mas vem me dizer, se fosse a espanholinha dos Garcia, que eu já vi vosmecê botar olho comprido…

Avelino sombreou a cara.

– Quem bota alguma coisa é galinha e olho comprido quem tem é cachorro. – O homem de bigode molhado de pinga e limão pôs-se de pé. – E eu não tenho cara de galinha nem de cachorro. Ou tenho? – O violão emudeceu; os amigos arregalados. Colocou o chapéu branco na cabeça, uns cobres no balcão e os pés na rua. – Vamos é cuidar da vida. Boas tardes!

Enfiado nas botas que lhe iam até os joelhos, mais semelhava um soldado de maus coturnos, rosto duro. Entanto, irritava-o esse conversê assim da Francisca, como se tivesse se engraçado por ela. Ouvira já um diz-que-disse por aí. O que não dava graça nenhuma. Era um homem independente, ora, e gostava disso. Mulher tinha em penca. Sem falar nos irmãos menores, a orientar. Certo, distribuía um afeto pela moça, mas daí a… O povo tira mais coisa do nada que minhoca tem na terra, pensava, indo à direção de seu posto de gasolina. Metia as mãos no bolso, tal menino que quer ocultar-se do castigo da palmatória, mas o caso é que estava enrabichado pela fulaninha andaluza. Tentou que tentou mudar o rumo dessa prosa, não adiantou: volta e meia, os dois papeando no portão da fazenda. Tudo por causa do raio daquele entrevero, num arrasta-pé meses atrás. Lembrava nitidamente do dia, desde o primeiro sol.

Despedira-se de sua mãe, dona Umbelina, e seu café aromoso, e, jipe na estrada, dirigiu-se para o posto, único existente na cidade de Lavínia. Município também chamado de Lá-foi, tamanho era pequena: se se desse um grito do começo da avenida, dava pra pegá-lo lá no final. Pois Avelino era proprietário desta importante posição, por direito e por sangue. O direito vinha da labuta; o sangue, de Seu Giovanni, italiano de Brescia, temido por seu temperamento colérico mas adorado pelas infusões e chás de raízes que preparava e, contava-se, curavam até a doença sagrada. Mais que um curandeiro, um verdadeiro santo. E transmitira sua força ao primogênito, a quem batizara em homenagem a uma montanha coberta por aveleiras, o Monte Avellino. Firme feito uma montanha serás, falara o homem, soerguendo seu primeiro filho no Brasil; dez anos depois, morreu. A viúva, dona Umbelina, foi cuidando do porto até o mais velho tomar conta e risco, e por intrepidez acabou virando dono de boteco, venda, posto, armazém e botica. Com tal arraigado capitalismo, Avelino foi eleito pelo alcaide local o xerife, e lhe deram um revólver, o Smith & Wesson 38 que conduzia reluzente na cintura, e que jamais tivera o gatilho apertado – até a noite deste dia.

– Dia – Tião, velhinho que cuidava do posto, levou a mão à pala do chapéu de palha, em resposta. Avelino olhou o homem ali acocorado, devaneando à espera que algum carro aparecesse, e teve uma idéia:

– Ô Tião, o pessoal da Esso me mandou uma carta lá da capital.

– É? – mascou o matuto.

– Parece que eles querem o posto pintadinho de azul, não de amarelo.

– É, é?

– É, sim, pois é. E ordens é ordens. Toca a pegar os latões de azul lá do armazém. E me pinta bem bonitinho, ouviu?

– É. É sim – o velhinho cuspiu fora o fumo. Por engano, haviam entregue um carregamento cinco vezes maior que o pedido, e Avelino não sabia mais o que fazer das tintas: já oferecera à igreja, espalhara uma multidão de mãos na própria casa – e os latões sempre lá, sobrando. Não era homem de catar trocado em pulga, portanto acreditava mui exorbitantemente na exuberância do esbanjamento. E escarrapachou-se numa cadeira de balanço, espiando o trabalho do outro.

Já era hora da sesta quando Avelino acordou com diversa idéia. Sabia de uma festa que ia suceder na fazenda dos Garcia, de noite, e pensou que seria interessante pregar uma peça naquele espanholzinho pernóstico. Mais interessante era vingar-se do motorista-capataz dele, que sempre ia abastecer a caminhonete na vizinha cidade de Lins, em vez de em seu posto. Levantou-se, entrou na lojinha do posto, bocejando, e ligou para a telefonista.

– Meu bom Arvelino, tanto tempo a gente não se vê…

– Pois é, dona moça… as obrigações, não é, o posto, o armazém…

Dona Eustácia, a telefonista, viúva de sardas no nariz e no colo, respeitabilíssima, tida e havida como a discrição em pessoa, fora tempos atrás exímia freqüentadora do Ferrabrás. Junto de Avelino.

– O telefone dos Garcia, diga, qual é?

Desfeito o contato com a viúva quase alegre, Avelino chamou à voz o capataz Ernâni, pondo um lenço no bocal do aparelho:

– É o motorista de dom Ernestino? Aqui é o seu Manolo. Sim, seu Ernâni. Olha, eu quero que você faça uma coisa pra mim. É uma surpresa para o dom Ernestino, e eu não queria que ele soubesse que fui eu que mandei… Você não quer vir até aqui buscar esse embrulho?

– Vou, sim senhor.

– Só que tem um porém, seu Ernâni: é uma coisa tão delicada, mas tão preciosa, que se o senhor vier de carro ou de cavalo tenho certeza que vai quebrar. Dá pro senhor vir a pé? Está no posto, com o Tião, eu deixei lá ontem.

– A pé?

– Eu tô falando espanhol?

– Não, seu Manolo, mas é que…

– Ele ia ficar tão triste se eu não desse, seu Ernâni… se ele descobre, nem sei o que pode fazer: é tão esquentado…

Dobrado por este argumento, o capataz disse que logo viria buscar, e desligou. A distância entre a fazenda de dom Ernestino e o posto Lavínia era de quarenta quilômetros.

– Tião? Tá vendo aquelas pedras ali? Aquela corda lá? Essa caixinha aí? Esse papel aqui? Você me faça o seguinte…

Deu três e meia e Avelino decidiu ir até o armazém, depois até a botica, conferir os negócios. À noite, iria ao boteco ver os amigos e de lá, quem sabe, para a festa. Antes, passou em casa, para um banho. Dona Umbelina começou:

– Figlio, você já com 27 anos e senza u’a donna…

– E quem é que vai cuidar de você, mamma?

A discussão parava sempre por aí. Já perfumado, Avelino deitou-se na rede, preparando-se para a noite. Muito ativo toda a vida, após ter sido promovido a xerife Avelino dera para filosofices de balanço, rede e colchão. Não exatamente um come-e-dorme, Avelino aquietara o braçal, para espicaçar o íntimo. Alguma coisa incomodava. Uma sensação de quebra, ele não sabia o que era. Talvez tivesse relação com Francisca, talvez fosse só o tédio das coisas sempre iguais: os negócios, a família, a cidade. Então, solucionava pasmaceiramente o inquietar com os amigos e os irmãos e as conversas e piadas que iam até bem cedo. Levar a vida, leve. Lembrando-se da brincadeira que fizera com Ernâni, pensou numa coisa que poderia ser o tema da prosa mais tarde: – metade das pessoas no mundo passa a vida carregando uma pesada caixa pra lá e pra cá sem nunca dignar-se a abrir. E, sorrindo, abriu sono solto.

Foi despertado aos atropelos:

– Seu Arvelino! Arvelino!

Era Tião.

– Ligaram da fazenda: o seu Manolo e o seu Ernestino tão se pegando na festa! Vão se matar!

Num pulo, Avelino já tinha juntado o 38 e a chave do jipe: imediatamente seu rosto ficou todo vermelho. Em cinco minutos, irrompia no arrasta-pé. Verdadeira zorra: dom Ernestino dava um murro em Manolo e dizia que ele não tinha vergonha na cara, fazer uma brincadeira dessa; Manolo, um baixote barrigudo e bundudo, revidava e chamava o amigo de louco. Aí, paravam e ficavam se encarando longos minutos, até o próximo golpe. Nem parecia uma briga de verdade: a turma do deixa-disso muito não se manifestava. Era só mais um exagero do Tião. Em volta, os familiares e amigos espiavam a briga sem fazer nada – mas percebia-se que aquele bate-boca já acontecia há algum tempo, e mesmo assim os contendores não pareciam nem machucados nem cansados. Cansado estava o capataz Ernâni, encostado num pau-de-sebo.

Então Avelino compreendeu o motivo: próxima da fogueira, uma pedra recém-desembrulhada, que tinha um formato a lembrar vagamente um órgão sexual. Teve gana de dar um soco na cabeça do Tião. Escolher justo uma pedra dessa feitura! Mas somente deu três passos à frente e gritou “parados!”, erguendo a arma para cima.

O problema é que a bala não saiu. Ou melhor, saiu, mas pela culatra: o povaréu todo se começou a rir. Até mesmo os dois brigões. E aí Avelino percebeu – zonzo de sono, tinha saído de casa só de camisa e samba-canção.

Vermelho, vexado, amarelo sorriso na cara de ameixa, não sabendo onde pôr as mãos, meteu o impotente revólver no meio das pernas e foi escapando de fininho. Antes, porém, esbarrou numa mocinha que, de mãos tapando o rosto, não o via e lhe atrapalhava a passagem. Mal deu tempo de captar quem era: a filha de dom Ernesto, Francisca, que aniversariava dezessete anos. Envergonhada com o sucedido. Isso foi o suficiente. E Avelino picou a mula.

Meia hora mais tarde, para desfazer qualquer má expressão, Avelino retornou, de largo sorriso sob os bigodes. Os ânimos já estavam apaziguados – em cima de seu próprio ridículo. Logo foi servido de cerveja e fez cumprimentarem-se seu Manolo e dom Ernestino. Ainda que jovem, irradiava uma autoridade irresistível. Claro que não contou o que sabia do caso da pedra. Isso já nem o interessava mais: seus olhos iam certeiros na menina morena dentro do vestido de algodão e cheiro de laranjeira que havia respeitado com tanto afinco suas vergonhas. E saiu dali tropicando e cantando errado, abraçado aos amigos.

Quem diria – pensava ele, agora que relembrara toda a história a caminho do posto -, quem sopraria que um homem como ele, Avelino, a montanha, ia parir um rato que era esse sentimento tonto? Já não adiantava esconder isso dele, nem mais de ninguém. Dom Ernestino entregara-lhe uma carta, através de Tião, naquele mesmo dia pela manhã. Dizia de precisar de um homem-pra-homem. E já adiantando o assunto: noivado. Chegara-se de conversa fiada entre esse homenzarrão e a menina dez anos mais nova. A carta implicitou até um dote. Mais, só entrelinhava. Avelino sentou-se na cadeira de balanço, olhou o céu faiscando e entremunhou para Tião:

– Ô Tião, recebi outra carta da Esso…

E Tião, cuspindo o fumo:

– É… que cor, seu Arvelino?

– Vermelho…

O menino já se acostumara a ver o pai só aos domingos. Mas não se acostumara àquela marca no peito do pai, que aparecia quando ele abria dois botões da camisa.

– É só um machucado, filho.

Domingos depois, a marca apareceu um pouco maior; depois de outros domingos, desapareceu detrás de uns esparadrapos. O que seria?

– É um tipo de queimadura. Quando o papai foi viajar pro Caribe, tomou muito sol e aí criou um ferimento.

O pai viajava muito para o Caribe, nas férias. Não levava o filho nem a mãe.

E a vida corria de domingo em domingo quando num deles a marca, e com ela o pai, não apareceram. Explicou a mãe:

– Seu pai foi de novo para o Caribe.

Na cabeça do menino o pai era um temerário, um louco: tinha ido de novo pra esse lugar que lhe abria buracos pelo corpo, cheio de piratas. Era que nem atravessar a rua sem olhar.

Segunda-feira o menino só não caiu de cama porque já estava nela, queimando de febre. Imaginou o pai com um disco de fogo no peito, cercado por mil leões. A pele do pai era uma escama de lagarto e o pai mudara de cor: ficara agora leitoso como o círculo quase completo da lua, brilhante palidez no céu preto.

Mas no domingo seguinte o pai apareceu, trazendo chocolates e surpresas. Não tinha ido pro Caribe.

– Uma operação, filho. Aquela marca era câncer de pele. Eles cortaram todo o tecido em volta, tiraram um pedaço de pele da perna e colocaram no buraco do peito. Viu? Quase não dá pra perceber.

O menino voltou tranqüilo e ao mesmo tempo inquieto. Para distrair-se, foi até o quintal, por onde ficou zanzando. A mãe o encontrou já bem tarde, dormindo no chão. À sua frente, um rabo de lagartixa se contorcia.

Pouco antes de morrer, Avelino foi chamado pelo pai:

– Me dá aqui tua mão esquerda.

Um homem de corpo grande, gordo, muito branco, de onde sobressaíam um nariz de vermelho permanente e minúsculos olhos azuis que deram cria no rosto de Avelino – vergado pela doença, don Giovanni era pouco mais de uma sombra magra e disforme. Dona Umbelina veio e lhe trocou outro lençol: apesar de curandeiro, o pai de Avelino não tinha nenhuma receita para pensar a sua própria doença – que fazia surgir de todos os poros finíssimos rios de sangue. Era como se uma vermelha teia de aranha sutílima se lhe cortasse o corpo. Giovanni passeou os olhos nas linhas da mão do filho, fechou os dedos do menino que tremia o queixo à sua frente e apertou com extrema força seu pulso:

– Tu és muito forte, filho. Mas és o último. Depois de ti, o sangue dos Brescianni será mais ralo que sangria em fim de festa.

Riu; sua cabeça, lenta, lentamente, enterrou-se no fofo travesseiro.

A cicatriz significa que algo foi bem assentado. A pele fica fina, mas mais forte. Porém existem cicatrizes em eclipse. Geralmente, marcas sobre as quais se passa levemente a ponta dos dedos e se sorri, ao recordar o brilho do punhal que produzira sua forma. Entretanto, este tipo de cicatriz floresce para dentro, em rancores e ressentimentos, e arboriza uma genealogia de outras cicatrizes. O que quer dizer que, apesar de fato consumado, cicatrizes não são matéria morta: a envergadura de uma família dá-se pelas cicatrizes de seus membros. A cicatriz é o trovão riscando no céu a eletricidade, é a mão parindo pelo lápis a palavra. A cicatriz é o próprio tempo em estado de semente, e, como tal, prolifera-se em outras cicatrizes. A cicatriz é a tatuagem do acaso.

– Vô, o que é isso aí no seu peito?

O avô, cabelos brancos que se desmanchavam no vento, fumava um cigarro no terraço do apartamento do menino, entronado numa rede. Estendeu a mão ao bule de café no chão, encheu a xícara até a boca – o médico lhe desaconselhara o álcool -, tragou o cigarro, cofiou o amarelo no bigode e riu:

– Foi um acidente de jipe que eu levei. Rolei uma ribanceira. Nada demais.

De noite, o menino sonhou com alguma coisa, de que não conseguiu se recordar. Depois dessa época, teve certa dificuldade em lembrar os sonhos.

Na clareira. O touro. Avelino. O sol. Dois ou três matutos na espia. Olho no olho, touro e homem. Parte o touro, a força nas patas dianteiras, as traseiras no ar. Parado o homem sorridente, músculos em rochedo metamorfo. O touro persegue o fim da distância: as mãos de Avelino são garras prenhes de ódio. Vindo, vindo, o outro cresce. Alto, em pé, duro o homem. Mas então – foi o sol, foi o sal nos olhos, foi o ódio, foram os olhos do touro, foi o medo, foi o quê? – Avelino decide-se súbito e desfaz as garras, abre os braços em cruz, e sorri, entregando-se inteiro. É a deixa: o touro impõe-se num salto de duas meias-luas em cheio no ventre do homem. A dor. A dor. O homem levantado do chão, o chão levantado no ar, o sol vazado nos furos do corpo de Avelino; feito um anjo de vitral varado de luz: plena levitação, homem dentro do céu – céu –, chuva de sangue doce queda sobre a terra. O touro bufa. Caído gigantesco no centro da clareira, Avelino em cruz desfeita. O touro se afasta para um canto, sossegadamente e em paz. Em sua direção vão dois filetes de sangue, até encontrarem sua grossa língua. O mundo é noite adentro rasgado de fora a fora pela luz da lua. Pânicos, correm os capiaus, a socorrer Avelino.

Meu avô passou trinta dias num delírio coagulado de mezinhas, soros e ungüentos que dona Umbelina lhe aplicava sobre os furos no tórax. Um chifre passou a um segundo do coração. De quando em vez, meu avô despertava numa voz pastosa: não mexam no touro, não façam nada com ele. Ninguém acreditava na história contada pelos dois ou três capiaus – quem podia entender? E, milagre dos milagres, as feridas cerraram em duas grotescas cicatrizes, o sangue cessou de correr. Um dia, todos assustados: Avelino em pé na soleira da porta, pedindo um cigarro. Vó Francisca, ao vê-lo, saiu de seu mutismo de terço e correu para abraçá-lo. Quem viu diz que ficou emocionado. O casamento ocorreu dali a exatos quinze dias, assim que a igreja foi totalmente repintada pelo imutável Tião.

Quanto ao touro, meu avô teve, durante a convalescença, seu pedido atendido; temiam que ele morresse, no contrário. Paz E Sossego precisou de dez homens para ser encurralado numa redoma de paus d’arco trançados e nunca mais cobriu nenhuma fêmea. Não que tivesse sido castrado: meu avô – e ninguém conseguia atinar com isso – ameaçou com a degola quem se aproximasse dos bagos do bicho. Razão não demasiado se fazia: era porque era, Avelino falou, causa acabada. Dizem que o animal morreu de velho, em solitário urro. Outros dizem que meu avô, envelhecido, se esqueceu do porquê do touro preso e o soltou; o touro, entanto, velho também, não se moveu um milímetro.

Mas dizem também que, quando meu pai nasceu, foi feita uma grande festa; o touro miúra, sacrificado: e que em Lavínia nunca tinham comido carne tão saborosa.

Verão, 1994.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 11:23 pm

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Fuga

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Um homem, vestido como soldado, caminha deserto por uma estrada. É noite. Sua mochila camuflada verga-lhe um ombro – dentro, dorme uma mudança. Venta frio. O homem sua como se tivesse cubos de gelo sob o quepe. Algumas luzes, na mata que ladeia a estrada pela esquerda, acendem-se e apagam-se. Sorri: em seus devaneios no front, quando via as bombas explodirem no céu, seus olhos viam fogos de artifício, seus olhos viam luzes de Natal, seus olhos viam vagalumes. Agora é a hora dos vagalumes, do vento, da noite, e da beira direita do asfalto ruim uma montanha eleva-se como velho ídolo – ao redor do cume, uma coroa de nuvens brancas. Os vagalumes luzem nos olhos do soldado que volta para casa.

Nesta casa, em seu mais noturno íntimo, num quarto atulhado de brinquedos e alucinações, respira crespa uma mulher. A seu lado, dorme um homem. Sob as pálpebras, a mulher está na verdade de olhos abertos – para dentro de si mesma. As cortinas dançam silhuetas insuspeitadas pelas janelas escancaradas, como se a noite viesse lamber os lençóis daquela cama agora quieta. Nua, ela pressente seu fluido e o sêmen do homem que ressona profundo a escorrerem por baixo de si, para aninhar-se nas trevas do colchão onde ela guarda algum dinheiro. Com estas notas, ela imagina comprar passagens para si e para o homem que sonha.

Por sua vez, ele, cuja pele se eriça no que o vento penetra as frestas de seu cobertor passeando por seu corpo suado, crê ser uma criança que desliza por um sábado de sol montado em um velocípede. Feliz numa rua solitária – onde os pássaros não cantem e as nuvens estatizem-se no céu feito pintadas, onde os postes e os edifícios e ele mesmo não deitem sombras –, o menino gira velozmente seus pés nos pedais. Do outro lado da distância, uma menina num vestido vermelho o observa, muda e sorridente. O menino sente seu suor apaziguar-se no vento fresco da corrida. Antes de chegar à menina, o menino e seu velocípede encontram um profundo buraco. Nele, mora um velho.

O homem de longos cabelos brancos olha para as mãos sentado no catre da cela em que se encontra. Sabe, pelo que lhe dizem os caminhos com que pegou as coisas do mundo, que seu tempo terminará em breve. Sabe, pelo canto dos pássaros do lado de fora das grades da prisão, que jamais sentirá novamente asas pousarem em suas mãos. Seus dedos trêmulos tateiam as faces marcadas de rugas. Há muito não olha para um espelho; há muito decorou a imagem fiel de seu rosto; há muito se esqueceu de tudo – já não lhe explicam mais nada os símbolos que decoram as paredes. Somente fere suas retinas a lembrança longínqua – quem sabe, a primeira – de uma menina vestida em vermelho.

Aquela menina talvez nunca desconfiasse das promessas que repousam em seu sorriso: passa suas tardes a rabiscar invenções, como pássaros de cinco asas, casas mal-assombradas, nuvens de formigas, vagalumes lilases. Pensa num garoto de sua rua, que vivia a persegui-la montado num velocípede. Um dia poderia se casar com ele; se cansaria dele, em seguida: precisaria fugir para longe, então – é esse lugar que seus lápis perseguem, furiosamente, no papel branco que se borra de muitas cores quando as granadas estouram, lá fora, e homens são vistos voando em sangue. Tem de interromper o desenho quando a mãe surge em seu quarto, com um envelope aberto nas mãos – não precisa escutar a notícia para entender que sua mãe só teria ela como companhia dali para frente. No papel, um homem vestido de soldado estaca a dois passos de sua casa.

Falta muito pouco para o cheiro quente da comida longamente sonhada nas trincheiras. Falta muito pouco para ler as notícias do futebol, embalado na rede no jardim de domingo. Ele acende um cigarro: a fumaça lhe traz um vago tremor – como estaria a mulher, depois de tantos anos? O revólver encontra o relógio no bolso, produzindo um som misterioso. Baixo, um avião risca o céu: breve, possivelmente a guerra chegaria àquela cidade. Porém, qualquer conspiração de seus pensamentos é menor que a sensação que domina os pés endurecidos nos coturnos; o caminho de volta lhe imprime uma fé que jamais teve – falta muito pouco para contemplar o corpo de sua mulher na cama.

Seu sonho era fugir; fugir sempre foi seu sonho. Até hoje não saberia distinguir a fronteira entre suas vontades e suas ações; nem sempre adivinhava onde começava a necessidade de escapar e as inacessíveis ilhas. Quisera casar-se, mas no sim que certa vez em público seus lábios murmuraram também esteve presente a palavra nunca. Seus pensamentos jamais desconfiavam da ciência que sua carne obtém das coisas do mundo. Por isso, naquela noite fria, que despede o calor de seu corpo, ela já pressentisse em seus desejos um insuficiente pesadelo, quando o homem ao seu lado desperta.
– Sonhei que caía num buraco – flutua na noite a rouca voz, para logo em seguida resvalar em soluços, nos seios amados da mulher. – Tenho medo de que alguma coisa me aconteça… – Não pense assim, meu amor, é por pouco tempo… logo estaremos juntos de novo. Daí a gente vai poder viajar… o que você prefere? Praia ou montanha? – Eu preferia não ter de ir para lá – ele geme, feito um menino; ela desliza os dedos pelo rosto crispado do homem que chora, tentando imaginá-lo vestido de verde. Cobre-o com o lençol. Amanhã, logo cedo, irá à guerra.

O soldado abre a porta de casa com sua própria chave. Profundamente, respira os cheiros noturnos que popularam durante tanto tempo suas alegrias e suas angústias. Pousa a mochila na mesa decorada com as bananas de sempre, prova o mesmo gosto de barro na água do filtro, reconhece o som da geladeira velha como o latido de um antigo cão. Nas sombras, calmamente, dirige-se até o quarto. Um pouco antes, detém-se, para ver-se ao espelho do banheiro: seu rosto é o esperado. A porta range um pouquinho ao empurrá-la. Quando dá por si, suas mãos estão cheias de rugas, seus cabelos são longos e brancos, e pela janela gradeada ele aguarda que os pássaros lhe tragam a notícia de uma menina vestida em vermelho.

Inverno, 1998.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 11:17 pm

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Evangelho segundo Zé Maria

with 2 comments

para Ricardo Miyake,
única pessoa que consegue conseguia
me fazer mudar de idéia

Fazia muito tempo que Zé tinha vontade de catar o Jovino de jeito. Assim, pela gola do uniforme: e agora, seu porra? enquanto rumava sua cabeça nas pedras do jardim do prédio, esmurrava seus dentinhos perfeitos vendo eles deslizar no sangue queixo abaixo, os dedos apertando o pescoço suado, Pára, Zé, Que pára o quê, cê vai é morrer agora, seu filho da puta; ele cuspia bem no meio da cara de Jovino e batia mais forte o coco dele nas rochas, o corpo do colega se descolando da vida, ah, vontade louca. Até se revirava na cama, sono perdido de ódio.

Seis meses esse desejo. Noite, noite, noite. Só faltava o motivo.

Desde que Zé Maria botou o olho no Jovino não foi com a cara. Assim. Três anos vigia, tinha se acostumado no trampo de guardar um magrelo predinho de apartamentos. Até que, motivado pela tal da onda de violência, o síndico decidiu chamar outro guarda noturno. Seis meses atrás apareceu o figura. Nada especial: novo, comprido, escuro, sarado, cabelo curto, rosto fino, de falar pouco e sempre acompanhado por um sorrisinho de tímido, parecia o Rivaldo, pernambucano como ele. Não curtia programas policiais de rádio tipo Gil Gomes ou Afanázio, não curtia pagode, não torcia pra time nenhum nem triscava pra zoeira. Tocava o tempo morto da noite chapado na leitura do Evangelho. Quieto, na dele.

Mas não era nada disso que perturbava Zé.

Nunca que brigaram: no contrário, se falavam bastante, Jovino ria sem graça das histórias bestas do colega, uma que outra fofoca do prédio; ria na miúda, os dentes tapados com a mão, riso baixo, rouco, risinho fino, um risinho. Era disso que Zé não gostava? Ele tentava decifrar – pois mais que o riso o que chateava era um tique, um pisco doido do olho direito que dava um jeito meio de malícia pro cara. Por causa da piscada acompanhada do tal sorrisinho, as moradoras reclamavam pros maridos, as filhas pros pais, entendiam cantada. Às vezes Zé se obrigava a explicar que não passava de um tique-tique nervoso, o colega era bíblia, respeitador; tinha que defender o outro, coisa que aperreava um tanto – o que nunca falou pro Jovino, pra não pegar mal. Mas – não era isso também a pulga que roía a orelha, a formiga que farejava o miolo. E durante o dia na cama Zé tentava dormir e a lembrança do riso e da piscada do Jovino e o sol e a insônia moíam e mordiam ele doido, doído de ódio.

Uma noite, junto da guarita, posto que revezavam, a conversa era de filme de artes marciais. Nisso ele também era chegado. Jovino contando uma cena dum filme velho do Bruce Lee, Zé contratacava de van Damme, o papo na moral quando o Jovino raspou baixo a voz, necessitando um particular. Falaí, fez Zé, curioso. É que eu luto caratê; cê sabe. Sou faixa-preta. Aí, um dia, um bacana de me viu treinando na academia lá que eu freqüento, fim-de-semana, e chegou e falou, bem na frente de todo mundo, tu luta muito bem, já te falaram isso? E tem um corpo… bem legal. Aí eu engrossei: que história é essa, rapai? Ele veio: sou diretor de cinema. Tô fazendo um filme que tem umas cenas de caratê. Filme de caratê brasileiro? Caratê o caramba!, foi o que Zé pegou. Peraí, Zé, dêxeu terminar, o cara falou que queria fazer um teste comigo e me deu um endereço lá no centro pra mim ir lá, não é legal? Jovino escancarou a dentuça: Eu vou lá amanhã, não fala pra ninguém não, falou? Zé mirou o fulano de esguelha: Sei não, Jovino, acho essa conversa atravessada, sei lá… filme de caratê brasileiro? Ah. Caratê o caralho, ele quer é fazer um filme de sacanagem contigo; aí ele se afastou pra fazer a ronda na garagem, deixando o Jovino no sorriso amarelado.

Tempo depois e o assunto girou pra cinema pornô. É, Zé curtia muito esse tipo de lance – puta, pinga e pipoca, aí se enfiava sua grana pouca. Jovino piscava o olhinho doido quando Zé descrevia as aventuras do Homem das Treze Polegadas e Meia. Tava ficando ligadão, dava pra ver, quando ele rolava uma cena em que uma enfermeira trepava com o Homem, um médico e um anestesista, no que sem mais o outro saiu com essa: …Xi… sei não… issaí parece coisa de baitola! Como assim, perguntou Zé, que é que tem? Ah, não sei… repartir mulher com outro, num rala-coxa… xiii… Que que é que tu tá falando, Zé se alterou, tu quer dizer que quem gosta disso é viado? Não, óa, não sei se o cara é boiola ou não, já que ele come tudo quanto é mulé nessa fita, feito cê diz… mas eu não faço isso não… pra falar o certo, nem gosto de ver essas coisas, não acho direito, e é perder dinheiro… Jovino até suou pra falar tanta coisa, piscando e sorrindo, a mão tapando a boca, sem-jeito, e aí foi que se enfiou de novo no livro preto.

Peraí, solta esse troço aí, explica isso direito! Zé esbugalhou o olho. Tu tá quereno dizer que quem assiste filme assim é viado? Sua garganta apertava. Não, Zé, tu não entendesse… Tá me chamano de burro, tamém? Eu tamém sei ler! Zé pôs a mão na cintura, perto do cassetete e do berro. Ah, dêxisso pra lá, que nóia, mano, eu falei é que quem faz isso, pra mim… acho esquisito, sabe, ficar pelado junto de outro macho, visse?… Escutaqui, seu preto metido a Bruce Lee, se tu quer me chamar de bicha por que não faz isso logo? Num é home? Ih, Zé… Jovino abaixava a cabeça: ôxi! deixa quieto, esquece isso aí, bobagem, não gosto de discussão à toa! Não gosta porque tu num tem culhão, né, não tem coragem de falar na minha cara o que tu pensa de verdade… covarde! Cusão! Cê já tá me ofendeno, chiou Jovino, se levantando na boa e saindo da guarita pra cima de Zé, que devolveu: Ah, fresco; tô te ofendeno, é? A estrelinha de cinema ficou putinha? Tom’ isso aqui, bichona: e deu um golpe certinho com o borrachão bem na testa do Jovino: Ai, aiai, faz isso não, meu, que brincadeira boba, dói que só a porra… Ah, mas tu vai chorar agora, frango? Quedê o caratê? Jovino colocou as mãos no machucado, tomou outro baque, agora na nuca, caindo no chão gemendo, Isso dói, Zé Maria, paraí, descupaí, eu tava só brincano… Zé agarrou o fulano pela camisa e puxou ele pra trás da guarita, pra não chamar a atenção, sempre esbordoando o feio, que se tentava defender com os braços na frente do rosto, o olho não parando de piscar, porrada em cima de porrada: Ri agora, seu porra, ri, cadê o caratê, viadinho? Caratê o cacete; Jovino já nem reclamava, seu rosto numa pasta negra e roxa se deformando no meio duns gemidinhos fracos, todas as bordoadas na cabeça: Zé deu uma última pancada, bem no meio do cocuruto – dava até gosto aquele som crocante feito pipoca no cinema, junto duns vermes de chocolate que caíam pelos buracos vermelhos que rasgam o cérebro – jogou pra longe o borrachão, se atirou pra cima do Jovino pelas golas do uniforme: Falagora, diz aí que eu sô boiola, diz! Da garganta do Jovino não saía patavina, e aí Zé pensou: …quem sabe eu salvo ele com respiração boca-a-boca, que nem nos filmes… mas logo mudou de idéia, que é isso que eu tô falando? Diz, seu viado! Fala comigo! Jovino! Jovino! Jovino. Mas ele não falou nada, e aí Zé lhe fechou as pestanas.

Zé Maria voltou pra guarita, se sentou. Fazia tempo que tinha vontade de catar o Jovino de jeito. Sempre faltou foi o motivo. Fechou o casaco, ventava frio; cruzou os braços, recostou a cabeça na mesa. Ali ficou, sem querer entender, sem querer mais nada de nada, dormindo pela primeira vez em seis meses, em cima das páginas amareladas do Evangelho.

Inverno, 1991.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 11:03 pm

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Documentário

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That’s right, that’s right,
I’m loosing my mind, that’s right.
[Beastie Boys]
Sejam poucas tuas palavras:
os muitos cuidados produzem sonhos
e no muito falar achar-se-á a loucura.
[Eclesiastes, 5, 1-3]
Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência.

.

I. Sonho que em todo o bairro há mesas e cadeiras vazias e passeio atônito com uma mulher [que não conheço mas sei que não é minha e no entanto tenho ciúme dela] e sou enquadrado por três ladrões aí no instante do tiro eu acordo, porque não sou besta.

31: Transito. Engarrafamento nas avenidas Brasil, Paulista, Reboucas. Transito pesado na Radial Leste. Congestionamento nas marginais Pinheiros e Tiete. Transito parado na avenida Cruzeiro do Sul, por causa de acidente envolvendo uma carreta, dois onibus, quatro carros e oito motos.
29: Noticias. Programa de emergencia para 99 – o governo deve enviar ao congresso, em outubro, um programa de emergencia de ajuste de contas publicas p/ tranquilizar os investidores estrangeiros e adaptar o orcamento a nova situacao internacional sem aumentar impostos.

II. Modo de usar: aplique sobre o cabelo molhado e couro cabeludo, massageando suavemente. Enxágüe. Repita se necessário. Para melhores resultados, utilize-o com freqüência. Para cabelos ressecados e/ou danificados, utilize o Condicionador ao menos uma vez por semana.

Eu é que não sei/ mas é melhor escutar/ se você quer ouvir/ e eu quero falar/ eu preciso dizer/ mas não quero escutar/ eu devo dizer/ mas não posso parar:/ my name is Rusty James [Edu K, DeFalla].

III. Composição: Lauril Éter Sulfato de Sódio, Mica/Dióxido de Titânio, Coco Amido Propil Betaina, Silicone, Goma Guar Quaternizada, Formaldeído, EDTA Na2, Vitamina E-Acetato, Ácido Cítrico, Hidróxido de Sódio, Perfume, Glucasil Complex®, Polímero Carboxivinílico, Cloreto de Sódio, Água.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando.]

IV. GÊMEOS [21mai-20jun]. Chega um momento na vida de todos os seres humanos em que devem-se tomar atitudes graves e radicais. Tentar evitar isso é como pedir ao destino para ele fazê-lo por meio de seus misteriosos mecanismos. Encare suas obrigações.

V. TROCA-SE perna mecânica usada por bichinho de estimação. Pode ser qualquer um. Tratar Roselângela, tel. [011] 560-0909.

03: Estamos te aguardando hoje a noite em casa para um fondue com direito a bacanal de sobremesa. Beijos, Clara Crocodilo.

VI. FALECEU anteontem à noite, ou na madrugada de ontem, o professor de Matemática Não-Linear David Couthard d’Amore. A moléstia, conforme relato de Kennedy Jeremias, médico do IML [ou EPM], parece ter-se iniciado há dois anos. Couthard publicou dois livros, que a reportagem não pôde encontrar pois foram todos incinerados por estudantes de matemática linear, no “Sábado Vermelho”, episódio sangrento ocorrido na Escola Politécnica em1994, em ocasião dos festejos do décimo aniversário da Teoria do Caos.

O professor Couthard teria incitado alguns alunos a desenvolverem “atos aleatórios”, os quais, numa seqüência de eventos inesperados, redundariam em “fatos passíveis de serem previstos àquela altura dos acontecimentos, trazendo de volta ao Homem as rédeas sobre esta arbitrariedade tola apelidada O Destino”. [Um destes “atos” teria sido um cigarro, ou uma coxinha, segundo outra versão, que um aluno lhe deu – coisas que à época Couthard dizia odiar.] Os alunos do professor Eric Bernardo Campoforto [Matemática Linear Avançada II], revoltados, resolveram então pôr fogo nos livros, que estavam ali postos à venda, como forma de ironizar os “atos aleatórios”. Houve luta e dois estudantes morreram – cada um pertencia a um campo oposto.

Consternado, segundo amigos e alunos o professor Couthard iniciou um lento processo de psicose maníaco-depressiva, passando a fumar um maço de cigarros por dia ou então engolir várias coxinhas de galinha, sem mastigar. Em certa ocasião, o professor declarou que “ao ver serem incineradas minhas obras, ao ver morrerem jovens no calor de uma disputa tão estúpida quanto inútil, penso que deste momento em diante aprendi a morrer”. Seus discípulos, assim como seus adversários, em comum tristes com o desaparecimento do professor, afirmaram que lamentavelmente há muito tempo não se discute as idéias de Couthard: “como se ele já estivesse morto para a comunidade científica”, nas palavras do professor Campoforto, que declarou solenemente ainda que “a partir de hoje o professor Couthard deixa a vida para entrar na História – ao menos para os que crêem nela”.

Conforme seu último desejo, o professor Couthard será cremado em Vila Alpina, junto com sua coleção de borboletas. Deixa esposa. Dia 20/1 de outubro. A família não divulgou a causa do falecimento, mas segundo alunos, o professor teria morrido vitimado por edema pulmonar. Este jornal ouviu uma segunda versão, segundo a qual Couthard D’Amore faleceu de indigestão.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando. Azuis, verdes, laranjas, rubis. Uma bandeja de copos girando.]

– Pode começar? Já tá gravando? Bom. Uma história foda que eu ouvi, mano, foi a do Bruninho, surfista lá de Maresias, tá ligado? ele memo, ia todo dia pra praia cinco da manhã, passava de pico em pico chamando os brothers pra aproveitar as ondas bem cedo, então, aí, teve um dia que deu cinco, seis, sete e o cara não piava na área, oito nove e cadê o figura, nada, resolveram catar o maluco na casa dele, bateram na porta e nada, foram na vizinha e ela: o doido tá no hospital. Vão pro quarto, o cara tá deitado, roncando, com os dois braços enfaixados, dois dias depois é que ficaram sabendo que o Bruninho tinha ficado bem loco de ácido, tá ligado, e começou a sacar um monte de barata em casa, o lóqui habitava sozinho e não tinha pra quem pedir ajuda, então, aí, né, demorou: as baratas começaram a cercar ele, e o bicho correndo dentro de casa, as baratas subindo pelas pernas do cara, pelo corpo, pelos braços, até que o Bruninho catou dois garfos e arrancou as baratas dos braços – mais a carne dos braços, né, mano véio. Foda.

VII. Resolvi que precisava fazer um esporte e optei pela natação: assim, num dia chuvoso, às dez da manhã de uma segunda-feira, subi na minha moto para ir até uma academia de ginástica ali na Vila Madalena. A mocinha da portaria, uma loira gostosíssima cujo rosto, magnífico, semelhava uma porta muito bem esculpida, ainda que todavia uma porta, o que não deixava de ser apropriado, me disse, comendo alguns ss e embananando-se frontalmente com uns verbos – o que me deixou um pouquinho melhor, uma vez que chegara ali meio por baixo –, que eu precisaria fazer, antes de tudo, um exame de avaliação física. Afinal, praticava regularmente algum esporte?

Não, respondi, a não ser levantamento de copo, e a velha piada não funcionou de novo, como já esperado; uma vez, bem, eu fiz natação, mas tive um problema do coração – e aqui ela levantou uma de suas esplêndidas sobrancelhas tingidas de loiro –, coisa que já solucionei, segundo a última visita ao médico, que foi há uns dez anos, acho; ah, mas mesmo assim vai ter de fazer de novo, de lá pra cá você pode ter piorado, pois é, confirmei, com certeza piorei, tanto é que resolvi fazer exercícios, veja você, então tá, ela sorriu, você preenche aqui essa ficha e depois aproveita que a examinadora da academia está aí e já faz a avaliação física com ela, e eu sorri, lembrando-me de cenas infantis em que quase sempre estava doente e era analisado por uma enfermeira, apalpado aqui e ali, coisa que sempre me dava muito prazer, pra não dizer tesão mesmo, até o momento impróprio em que invariavelmente aparecia um médico ou clínico cínico e brutamontes, para minha infelicidade, o que é facilmente explicável, nessa que é uma situação bastante óbvia.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando. Azuis, verdes, laranjas, rubis. Uma bandeja de copos de refrigerantes girando. Pedras de gelo girando num copo de uísque – nós girando em volta. Copos de longe, de perfil, de frente, de perto, de muito perto, quase sendo tocados.]

04: Se puder, me ligue agora, tenho um convite a fazer. Beijos, Clarissa.

– Não te encontrei aquele dia porque resolvi escrever sobre o tal do ácido que tomei em Ilha Grande. Escrevi tudo direitinho, tintim por tintim, e coloquei num envelope, e o envelope no bolso do casaco. Fui com os amigos assistir Hana-Bi, e quando saí pra encontrar com você senti que o envelope não estava mais no meu bolso; aí lembrei que tinha tirado do casaco, pra não amassar, e colocado numa cadeira do lado da minha. Então resolvi voltar pro cinema: a gerente me disse que não tinham encontrado nada – entrei na sala assim mesmo, passando por cima da roleta, a lanterninha atrás de mim, desesperada, no meio da outra sessão, e fui até onde eu tinha ficado, atrapalhando todo mundo, fiz um senhor sair do lugar dele, falei que tinha perdido uma coisa importante ali, e não tava ali, aí tirei a mulher dele do lado, também não era, achei que fosse na outra fila e tirei outras pessoas de lá; começaram a chiar e a reclamar, veio a lanterninha me expulsar de lá, reclamando que eu visse depois da sessão, que ia demorar uma hora pra acabar.

Como o que eu tinha escrito era importante, talvez nem tanto pra você, mas sim pra mim, fiquei lá, que nem uma idiota, chorando de raiva, e não conseguia lembrar do teu bip pra te avisar o que tava acontecendo, quando terminou o filme eu entrei que nem uma maluca, já fui lá pra frente, mas foi aí que me dei conta que tava procurando em cadeiras muito longe de onde tinha sentado, por isso comecei a chorar de verdade. Tive certeza que alguém pegou o envelope, com a história que eu ia te trazer, e fiquei desesperada, afinal de contas alguém devia estar lendo tudo o que me aconteceu naquela tarde, quando eu tomei ácido a primeira vez. Bom, eu tinha outra esperança, de que a pessoa que tivesse pego o envelope visse o meu nome e o telefone da Secretaria da Cultura, e quem sabe me devolvesse. Meu nome e meu telefone estavam escritos tanto no envelope quanto no papel que continha a história que eu queria te contar pra te ajudar a escrever teu conto. Ah, agora nem tenho vontade de te contar mais.

05: Nao tenho condicoes biopsicosociais de ir a reuniao de hoje sobre o bar. Comunico mais tarde os motivos reais. Pedro Paradoxo.

VIII. Peguei a ficha e preenchi todas as lacunas, de cara obtendo um prazer simplório, posto que me sentia como tendo já passado por uma prova – talvez os analfabetos não freqüentem academias de ginástica [só as de letras]. Nome, nomes dos pais, RG, CIC, estado civil [o que é isso nos nossos dias?], cartão de crédito [para quê?], escolaridade, como tomou conhecimento da academia, esportes favoritos, esportes que pratica, bebe, fuma, usa drogas, quando foi a última vez que desmaiou, tipo sangüíneo, já foi operado, tem tatuagens, é alérgico a alguma coisa, tem convênio médico, tem hipertenso, cardíaco ou diabético na família, ufa! em cinco minutos dei toda uma descrição de mim mesmo, será que era verdade que em um retângulo de mais ou menos trinta perguntas e respostas se podia resumir um homem? E se fosse importante saber que eu torcia pelo Corinthians para que meu condicionamento físico desse resultados? E se eu tivesse mentido aquilo tudo [principalmente quanto ao cartão de crédito]?

Bobagem: eu estava a pedir demais das coisas, o mundo era assim mesmo, duro e antipático como a recepcionista loira e fria à la Xuxa que me sorria cortesmente, e aquilo não era para dramas, talvez só uma comédia sem graça: com desdém, entreguei a ficha e subi. Nem cheguei no primeiro degrau, escuto: – você esqueceu de assinar!

06: Marilda, estou chegando em casa em meia hora. Beijos, Antenor.

IX. Worm’s work: that’s the work of writers. Apenas procuro fazer um jornalismo do inconsciente.

– Eu, quando fumo maconha, fico deprimida. Muito deprimida. Começa que eu vou ficando dispersa, olhando para as coisas como se elas quisessem dizer mais do que elas realmente fossem. Então é como se eu estivesse escutando a voz das coisas. E essas vozes são muito tristes, solitárias e carentes. Elas precisam de você, de alguma forma. E eu sou muito pequena para poder dar o amor que elas esperam, precisam. Aí procuro ver o que posso fazer por elas. Como posso atingi-las. E acabo atingida. Suas demandas são sempre superiores às minhas ofertas; e o que desejo, ninguém pode me oferecer. Existe um confronto primário nisso tudo: um desajuste entre dois planos. Vai daí que fico cansada, com as pálpebras caídas, e simplesmente sorrio. Às vezes me dá sono, e durmo. Às vezes me dá fome, sede, e como ou bebo. Por dentro, os abismos em mim se abrem, se agitam e me puxam. Quando dou por mim, já se passou um longo tempo – e os cinzeiros estão cheios de bitucas.

07: Flectere fi nekueo fuperos, Acheronta movebo. Eneida, Virgilio. Lidia.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando. Azuis, verdes, laranjas, rubis. Uma bandeja de copos de refrigerantes girando. Pedras de gelo num copo de uísque girando – nós em volta. Copos de longe, de perto, quase sendo tocados. O líquido e suas ondas – e por trás, pessoas em ondas: pessoas dançando, pessoas rindo, pessoas andando, pessoas se abraçando, pessoas se beijando.]

08: Amor da minha vida, acorde, estou morrendo de saudades, acabei de chegar em SP, acorde agora, e me ligue. Um beijo. Bianca [porem preta].

09: Voce ja se lembrou da melodia de Jesus, Alegria dos Homens? Beijos, Beatriz.

X. Olho para aquele vazio pessoal e intransferível que me produz uma emoção distante, fria: o encontro com você mesmo todos os dias, sempre que ocorre esta situação. Todo dia você fala quem é – na sua assinatura, diz: esse sou eu; eu estou aqui – eu sou. Em geral assinando cheques, faturas de cartão de crédito, encomendas recebidas, bilhetes com pedidos, entregas de trabalhos – onde dar-se-ia o instante da auto-revelação, conjuga-se outro ocultamento, nova mascaração. Afinal, quem é você? Você é o seu emprego? Você é o que você come? Você é o que você gosta? Você é as pessoas que estão com você? Você é as roupas com que se veste, os livros que lê, os filmes a que assiste, as músicas que ouve? Você é seu cheiro ou os cheiros que você gosta? O que determina a sua existência ou o seu destino? Quais são os fatores que indiciam as suas escolhas? Até que ponto você são suas escolhas e até onde estas escolhas manipulam sua vida? Por exemplo, digamos que você gosta de fumar: você vai comprar um cigarro por causa daquela primeira escolha que foi gostar de fumar e conhece a sua alma gêmea na padaria. Se não fumasse teria a chance de conhecê-la alguma vez? Posso usar o telefone?
(Conectel bom dia, o código. Código 33813, mensagem?) Você morre de medo de mim, não é? (Sim, senhor, pode continuar.) Morre de medo que eu te agarre, né? Mas não adianta. Eu vou agarrar você. E isso não é nem uma ameaça. (Um momento, senhor, estou mudando de tela, código 33813?) Pra mim, já é uma lembrança. (Quem assina, senhor? Ela sabe? Obrigado, senhor, tenha um bom dia.)

A terceira fase, separada da segunda por uma crise redobrada, uma embriaguez vertiginosa seguida de um novo mal-estar, é algo indescritível; é a felicidade absoluta. Acabou o redemoinho, o tumulto. É uma beatitude calma e imóvel. Todos os problemas filosóficos estão resolvidos. Qualquer contradição transformou-se em unidade. O homem virou deus [Baudelaire, O poema do haxixe].

– Não, não me lembro direito, não vou poder te ajudar. Só que foi muito, muito, muito bom. Divido a minha vida em antes e depois daquele momento. Aliás, não só minha vida, como também o meu pau. É que, sabe, estava com a minha garota. A noite toda. Foi tão louco que muito depois é que percebi que aquela parte, a pele, sabe, atrás do freio, manja, tinha rasgado. Acho que a gente ficou transando vários dias seguidos. Tive que ir prum hospital, dois ou três dias depois, não me lembro, pra operar. Hoje estou 100%. Na hora, desculpe o trocadilho, doeu pra caralho. Mas foi maravilhoso. Bom demais!

09: Imagino que com esse tempo voce deva ter ficado doente. Se precisar de um cha de limao com alho, me avise. Um beijo. Ale.

10: Juvenilton, se for o homem da minha vida, pode me ligar, ja estou desocupada. Um beijo, Abigail.

– Já fumei em cada coisa, cara. Nem sempre se acha seda decente. Papel de pão. Papel sulfite. Folha de dicionário. Papel de maço de cigarro. Guardanapo [os melhores são aqueles de televisãozinha]. Lenço. Palha. Jornal velho. Qualquer coisa fininha serve, manja. Papel higiênico foi uma decadência. Uma vez, rasguei uma tirinha da lâmpada japonesa de um amigo – carbura super bem. Até hoje, o melhor papel que peguei foi de uma bíblia dessas que deixam pra você pegar numa gaveta de hotel. Lembro que era a última folha do Apocalipse. Decidi parar com isso quando estava chegando no Antigo Testamento. Agora, só tomo guaraná em pó. No máximo, cheiro rapé.

11: Ja sarou? Estou esperando. Um beijo. Jo.

12: Espero que voce esteja se sentindo melhor! Um beijao, Betina.

13: Nao foi possivel conseguir a roupa que voce pediu. Tentei durante a semana, mas nenhum dos meus amigos pode me arrumar. Nao vou dormir na sua casa, pois tenho de ficar com a mamae. Ela quebrou o pe. Qualquer coisa, me bipe. Ainda ta doente? Beijo do teu irmao.

XI. Então fui subindo lentamente as escadas, já me sentindo um condenado – só não sabia qual era a sentença muito menos o crime. Ao último degrau, deparo-me com a moça que vai a mim propor os testes de condição física: uma morena clara pequena, de porte gracioso, proporções perfeitas, músculos suaves, cabelos presos num rabo-de-cavalo curto, deixando a descoberto a nuca em que flutuava uma penugem loira; vestida de camiseta branca, shorts pretos de ginástica e tênis brancos, e mais nenhum adereço fora seus olhos pretos investigadores, olhos que pareciam mesmo vir de fora deste corpo – a própria imagem da perfeição acadêmica, se assim posso concluir. Seu nome era Fernanda, mas todo mundo a chamava de Fê, como apresentou-se. Levando-me delicadamente, sem me tocar, Fê mediu-me, pesou-me, anotou-me em seu laptop. Pediu-me que fizesse alguns exercícios básicos – nada que confundisse minha coordenação motora – e calculou em seu winchester implacável os números que definiam o vigor de meus músculos e nervos, a ética material de minhas células, o compromisso moral de meu DNA em relação ao potencial da força humana. Pelo rosto liso e reto de Fê, que me sorria a um tempo consoladora e motivante, emoções não passavam: o homem, mais que ele e suas circunstâncias, é suas medidas e suas condições. Talvez anatomia seja mesmo destino, como resignou-se Freud certa vez.

Creio que as minhas medidas não eram nada boas, afinal sentia-me já meio cansado [lembrava-me ainda em jejum], e perturbado pelo meu pager, que não parava de tocar. Foi no teste final que encontrei uma revelação para a qual não me havia preparado.

14: Ligue para nos. Estamos preocupados. Lu e Gilson.

15: Cliente Teletrim, nao localizamos pgto fatura venc[ctj] 08/09[/98] evite desativacao servicos em 21/09/98, efetue pgto ur[g]ente

– Comigo, imagino que a coisa se passe assim: não importa que eu tenha fumado maconha, hash, tomado ácido ou chá de cogumelo, a sensação de fundo é a mesma: o outro eu que eu sou ocupa sua vaga dentro deste corpo. Digamos que este outro homem ria, chore, emocione-se, reflita e observe o mundo ao seu redor de uma outra forma, enquanto o primeiro homem foi para longe. Ou então as coisas que se passam comigo só aconteçam porque está presente o outro, e então as memórias da época da loucura sejam apenas reflexos do passado de um outro – ou mesmo sonhos dele. Ou então pudessem ser os meus próprios sonhos, e o sonho seja o espaço de que o outro emerge. Esta sendo assim a explicação para os nossos sonhos: você vai dormir, e outro você ocupa o seu lugar; do mesmo modo, do outro lado, quando acorda, é porque está colocando o você outro na cama. Ou quem sabe nós sejamos os sonhos de outros, e quando mergulhamos nas drogas estejamos somente nos lembrando do período em que fomos simplesmente nós mesmos? Se a metáfora é a primeira expressão da arte poética humana, tal como os sonhos são nossa primitiva épica, diria Vico, via Borges, utilizando alguns meios de expansão/deformação da percepção/estados de consciência poderíamos lograr atingir essa época rudimentar de entendimento da realidade e voltar então àquele preciso momento em que o homem ainda não havia se dissociado da natureza e estabelecido a radical fronteira entre ele e o mundo, entre as coisas do homem e as coisas que não têm nome: porque esta é a verdade – a partir do instante em que as coisas se nomeiam, elas deixam de existir.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando. Azuis, verdes, laranjas, rubis. Pedras de gelo girando num copo de uísque girando – copos de longe, de frente, de perto, de muito perto. O líquido e suas ondas – e por trás, pessoas em ondas: olhos por trás de copos. Tudo gira, dança, sem ponto de fuga ou linha do horizonte; e luzes sendo sugadas pelos líquidos; escorrendo para os lados; incandescendo dentro dos copos: reflexos, visões, fantasias, vertigens, miragens.]

16: Voce ja pensou em escrever um conto sobre os objetos que as pessoas perdem nos cinemas? Beijos, Bia.

17: Oh, poeta namorador, passeador de maos dadas, nao poderei comparecer ao lisergico encontro… e coisa… e tal…

If the Sun refuses to shine, I don’t mind [Hendrix].

– É pruma pesquisa, é? Falou. Olha só. Foi em Floripa. Eu tinha 14 anos e minha irmã estava com uns amigos muito doidos, minha mãe tinha viajado. Eu estava no sofá dando uns beijinhos no Dani quando de repente eu vi na minha frente aquele quadradinho colorido, que diziam ser a orelha do Bart Simpson. A gente mandou ver com um chazinho de dama-da-noite. Naquela época tudo era muito florido. Lembro até hoje que estava tocando “If six was nine” e que chovia um pouco, aquele ventão da ilha batia nas janelas. Bom. Daí eu rachei com o Dani o doce, botei embaixo da língua e pá e mandei o chá de trombeta, uma cerveja e tal. Aí é que foi a mandioca.

Quer dizer, ainda não tinha sido. Eu cismei de tirar as roupas do varal, por causa da chuva, e nisso também levei o Hulk pra passear. Não, o Hulk não era um cachorro; na verdade, na verdade, era a iguana do Daniel. Bom: quando eu vi os caras tavam falando Bibica, você tá louca, tira essas roupas daí, e eu não entendia nada, porque tinha que secar as roupas da chuva e o pessoal não deixava, tirava de dentro, rindo, e daí eu colocava de novo, demorou um tempinho pra eu perceber que aquilo não era a máquina de secar, era a geladeira. Então, decidi ir descansar um pouquinho no quarto, no meio dos ursinhos de pelúcia, mas quando cheguei lá a cama estava tomada por várias Hebes Camargos em miniatura, pegando na minha bochecha e falando “que grachinha!”. Logo vi que ali não era o meu lugar. O pôr-do-sol, ou nascer do sol, eu já não lembro – na verdade, na verdade, a loucura durou uns dois ou três dias – foi a coisa mais linda do mundo, não dá pra descrever a quantidade de cores e sons e sensações boas.

O chato foi só o que rolou com o Hulk: tadinho, a gente deixou ele no relento e ele morreu de fome.

18: Voce nao acha que ja venceu o periodo da nossa separacao? Eu prometo que nao vou colocar voce no pau e nem pedir mais a pensao das criancas. Liga pra mim, estou com saudades. Princesa Encantada.

19: Voce vai me ligar, ou eu vou ter que continuar a limpar com a sua camiseta a privada? Beijos, Lully.

XII. Subi na bicicleta ergométrica e comecei, com muita facilidade, o último teste: e foi “muito fácil” o que respondi à examinadora que indagava-me sobre o grau de dificuldade em proceder à tarefa. Então ela girou um botão e a bicicleta pareceu um pouco mais pesada, o que me fez diminuir minhas expectativas para “fácil”; ela continuou girando um botão no que um véu negro ia se abatendo sobre meus olhos ao mesmo tempo em que bolas de ferro eram-me colocadas nas pernas, “pouco fácil” para “pouco difícil”, felizmente ainda não impossível; e nisso eu só gostaria de nunca ter ido àquele lugar, jamais deveria ter tido a idéia tola de melhorar o condicionamento físico; buscando pelo menos espiritualmente fugir àquelas aflições físicas, como um torturado buscando não confessar o crime – que seria talvez a fragilidade do corpo –, eu, num último esforço, puxei meus olhos para a janela, e lá alumbrei a Necrópole São Paulo, do outro lado da rua, e seus ciprestes balançando melancolicamente na manhã gelada e branca sobre as lápides indiferentes, as lápides e seus nomes gravados junto com últimas vãs mensagens ao mundo, últimas vaidades, últimos discursos em últimos ternos de formatura, suas flores vestidas de urubus, suas visitas culpadas, remidas, ocupadas em dirigir pensamentos ao passado – este espaço imutável do cemitério, onde as coisas nascem para trás, como se, ao invés de jardins, fossem plantados desertos: era nisso que meus olhos puseram pouso, trazendo no bico o espírito e o corpo fatigados; para que tanta agitação e fúria? Frente à eternidade, nada faz sentido; perdem-se valores como gotas num oceano: tudo se dilui, esquece-se a consistência, noções de causa e efeito inexistem, objetos se desprendem de suas denominações, estados se alternam – pode parar, o teste acabou, soprou Fê, enquanto meus olhos se perdiam nas tumbas e minhas pernas giravam velozes, sem nenhum esforço. Pode parar, repetiu. Posso parar, pensei.

Quando saem os resultados?, perguntei, vestindo-me atrás de um biombo, enquanto os números de minha matéria refletiam-se, fosfóricos, em seus olhos negros. Já saíram, sorriu, tirando do laptop um disquete. Você está ótimo, pronto para começar o seu condicionamento físico, não vai ter problema nenhum, está com uma resistência excelente, sorria, academicamente. Ali naquele quadrilátero preto estava a síntese de meus músculos segundo os parâmetros da ciência moderna, e o que ela afirmava estava em conformidade com o mundo. Você fica com o disquete e entrega pro seu instrutor, que ele tira uma cópia pra você. Ah, sim, fora a plataforma em bytes eu teria um equivalente em papel. Mais um auto-retrato sem transcendência dos meus dias. Obrigado, despedi-me, e desci as escadas. E aí, veio a recepcionista loira, foi legal? Quando você quer começar? Jamais vou começar algo que não possa terminar, respondi, e fui ao encontro da minha moto na manhã gelada.

20: Fomos feitos da mesma materia dos sonhos, e nossa curta existencia e rodeada de sono. Voce me perdoa se eu for dormir e a gente nao sair? Beijos, Bonita.

[Copos. Copos. Copos. Uma festa. Gente. Bandejas girando. Pessoas girando. Copos girando. Azuis, verdes, laranjas, rubis. Uma bandeja de copos girando: fantas-laranjas, fantas-uvas, coca-colas, sodas limonadas, guaranás. Pedras de gelo girando num copo de uísque girando – nós girando em volta. Copos de longe, de perfil, de frente, de perto, de muito perto, quase sendo tocados. O líquido e suas ondas – e por trás, pessoas em ondas: pessoas dançando, pessoas rindo, pessoas andando, pessoas se abraçando, pessoas se beijando. Olhos por trás de copos. Tudo gira, dança, sem ponto de fuga ou linha do horizonte; de todos os lados. E luzes sendo sugadas pelos líquidos; escorrendo para os lados; incandescendo dentro dos copos; por baixo e por cima: reflexos, visões, fantasias, vertigens, miragens. Uma bandeja de copos girando: uísques, vodcas, vinhos, licores, caipirinhas, tequilas. Bocas bebendo. Línguas passeando pelas bordas do líquido. Suor em gotículas pelas paredes dos copos, pelas faces das pessoas. Dedos girando pelos cubos de gelo. Dedos sendo chupados. Dedos molhados deslizando pelos rostos das pessoas. Pelos olhos molhados das pessoas. Pelos olhos vistos por trás dos copos, por trás dos líquidos, dos cubos de gelo, pelas paredes de vidro, pelas gotículas que suam nas paredes. E chove sem parar nesta noite descontínua, desesperadamente, sem escalas, larga e desmedida noite, líquidos por todos os lados, do começo ao fim dos tempos continuará chovendo e não se ouvirão jamais os risos e choros das pessoas que bebem, somente o som vasto e esplendoroso e cheio da chuva chovendo.]

Primavera, 1998.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 10:51 pm

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Conto

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Mas o pior de tudo mesmo nessas noites quentes não é o mormaço, nem os insetos entrando pela janela que seu eu não deixar escancarada o quarto se inunda de mais calor; nem a insônia, impedindo-me de dormir e então levantar-me mais cedo e por conseguinte ir dormir mais tarde no outro dia, alimentando um ciclo sem fim à vista sempre aberta sempre alerta ansiando por sonho ou sono ao menos que não vem nunca, eu que amanhã tenho de acordar bem cedo; não, o pior de tudo mesmo é esse silêncio que faz fora e cala dentro e dificulta-me, como a insônia ao sono, usar o pouco tempo de que disponho para sonhar em vigília e escrever o Conto que devo entregar amanhã às nove. Falar nisso, são três da manhã e um dia desses vou tomar uma decisão e começar a beber, a fumar, fazer qualquer coisa que uns Escritores que conheço fazem quando se põem a escrever, quem sabe assim. Porque, ficar observando os peixes azuis e vermelhos e amarelos que nadam nos aquários espalhados pelo apartamento, brincando com suas caudas, imitando seu movimento com a boquinha ou batendo no vidro só para assustá-los já vi que não dá. Então vamos sair dessa pequena janela e recostar-se à outra, a que dá para a rua, talvez desse jeito arranjo um assunto pro Conto, uma vez que o último o Editor descobriu que eu me inspirei/roubei duns trechos da Revista de Medicina, num artigo sobre os gases que se formam no corpo depois que a gente morre, artigo esse que polemizava com um Texto de um espírita, na mesma página, o qual discorria a respeito da vida após a morte, muito interessante a polêmica – não posso resistir a declará-la bastante espirituosa – bem; eu só estelionatei ipsis litteris uma parte em que se contava a história de uma mulher que desencarnara e no dia do velório apertou a mão do cunhado várias vezes, antes da terra cobrir-lhe os olhos, e o tal amado cunhado chamou o morgue, a polícia e o diabo, que é sempre o último a saber desses fatos, aos berros de que a mulher estava viva, então o artigo explicava que, ao se formarem, os gases dentro do corpo morto fazem com que ocorram movimentos involuntários e é óbvio, o kardecista rezava serem movimentos voluntários pois comandados pelo espírito da mulher tentando retornar à vida mas afinal, que isso importa? Interessa nada, o Conto foi publicado e a inês é morta ou seja lá qual for seu nome, o Editor vai me mandar embora da Empresa se eu não entregar a ele outro Texto e um bom, amanhã, e desta vez quer um inédito, já se cansou de topar com meus plágios tarde demais, o que vai ser difícil para mim, sem imaginação há meses [desde que comecei a escrever senti que não dispunha de imaginação, mas tudo bem, descobri muitos Escritores carentes desta matéria-prima de sonho, eles entram pela Rede e chupam alguma coisa acolá e mudam daqui e torcem de lá e pronto, já basta aquele prêmio ignóbil os desculpando com seu famoso “imaturos copiam, maduros roubam” e estão todos justificados, o Dinheiro creditado na conta automaticamente e o mundo correndo em sua perfeita ordem]; da janela, nada vejo além de prédios e prédios apagados em ruas escuras e calçadas vagas no ar parado e sem gente, Cidade morta e na calçada um corpo estendido, um corpo estendido no chão à frente do meu edifício.

Eu disse um corpo estendido? Opa, isso dá pra brincar, será que é de um morto? Imagine, imagine, vamos lá, Escritor, do que será que é que o cara morreu? Terá gases movimentando suas mãos? Aqui do décimo-sétimo não dá pra ver muito bem e ainda eu, míope, e talvez o homem nem esteja morto, hoje em dia tanta gente sem tento dorme na rua, nem sei de onde tirei que ele está desencarnado, contudo não sou doido a ponto de descer só pra me certificar disto, vai que aparece a Polícia ou pior, um marginal, um bandido, um ladrão e vem e me rouba e me mata e me joga no Rio e aí estou sim esquecido para sempre, adeus fama, ou pior, o cara está só fingindo de morto apenas pra me assustar e me matar, mas não sou bobo não, tenho certeza que é isso mesmo que ele está querendo, dá até pra ver um sorriso na carona dele apesar de estar super escuro: eu que não me atrevo a descer, a vida nessa Cidade é tão perigosa, do que será que o cara morreu?

Esta é a questão; pense somente nisso, Escritor, não se perca por pensamentos ou imagens fúteis; Conto, segundo os manuais abalizados, não é digressão, ache um título, que tal “Tá lá um corpo estendido no chão”, daquela Música daquele Compositor, como é mesmo o nome? Não, o Editor não iria gostar, melhor me concentrar na primeira Frase – já sei, uma boa sempre é colocar de saída um gancho enigmático, tipo E o morto sorria : boa, Escritor! O passo seguinte é descrever objetivamente o sujeito, para não perder o Leitor, entanto, está tão escuro, ou será que o cara está escuro mesmo, colorido pela morte? Acho que sim; não! Em Conto deve-se ser claro ao máximo e vago o mínimo possível, sem essa de tons cinzas, não existe o “algo”: vamos lá pegar o binóculo.

Merda de binóculo caolho, uma lente está trincada mesmo assim dá pra notar que o homem tem uma cara cinzenta e os braços e pernas abertos em X e cabelo grande e camisa xadrez, os olhos fechados, e que sorri – por que sorri, e de quê? Ocorre-me que ele talvez não esteja morto; pode estar só dormindo. Dormindo, numa noite dessas? A uma hora dessas? Como é que alguém pode dormir na rua e sorrir? Não é possível, assim não dá. Deve ser o rigor mortis. Focalizo o quanto posso o rosto dele e é um semblante simpático de olhos cerrados e acode-me uma idéia – se ele estiver dormindo, não poderia igualmente estar sonhando? E se sonha, não é falta de educação eu espiá-lo? Mas de onde veio essa dúvida, agora? Bem: o homem tem uma testa alta e um queixo quadrado que nunca poderiam estar mortos tamanha a sua ênfase viril, porque se for um cadáver tudo bem, nada demais dar uma xeretada, mas e se estiver vivo e sonhando? Ele não pode saber, se dorme, que o espiono; entretanto, estando morto, saberá, segundo o kardecista, posto que vagaria por perto de seu antigo invólucro, apesar de, por outro lado, conspirarem contra mim teorias que afirmam que o indivíduo deixa seu corpo durante o sono, sua mente passeando por aí inclusive podendo estar por perto e até mesmo entrar pela minha janela, mas, o que é isso, pés no chão, Escritor, para mim qual a melhor opção? Acho que permanecerei na dúvida pois nunca que vou descer para saber qual o real estado do infeliz e isso nem me interessa: importa é o Conto que farei usando esse corpo estendido no chão de uma madrugada qualquer e que Leitores irão lê-lo e o Dinheiro que ganharei com isso, é nisso que devo me concentrar – eu tenho essa mania de desidratar meus pensamentos e idéias, como neste instante, quando escuto passos, leves passos, diria mesmo sorrateiros passos, serão no corredor à frente da minha porta? É o espírito do morto! É isso, o cara me assombrando, dando-me um susto, vou ou não vou olhar no olho mágico? Mas que coisa! Eu não moro sozinho nesse edifício enorme, deve ser algum vizinho chegando em casa a essa hora – quem chegando de madrugada e de onde? No olho mágico o corredor branco e vazio estala ainda os ecos dos passos sorrateiros na minha cabeça, não era ninguém, não era ninguém, Escritor, porém os passos não passam, janela lá vou eu – é só um homem, que aliás eu conheço muito bem, andando apressado na rua.

Meu companheiro de insônia! Quase feliz por vê-lo, novamente; coitado, creio que também não suporta dormir no calor dessa noite – um homem de estatura mediana e acelerada, ele é todo velocidade, os cabelos puxados para trás com gel, os óculos pretos e quadrados, sempre de terno cinza e gravata preta fininha, seus pés rebrilham as luzes de mercúrio – um ser em si apressado desfilando sua insônia. Sim, tenho absoluta convicção de que ele tem insônia e não consegue dormir à noite, pois dá várias voltas ao redor do quarteirão e deve vir de longe, ir não sei pra onde, penso que anda rápido assim a fim de ficar cansado e conseguir dormir – pelo menos é isso o que eu faria se fosse louco o bastante para andar à noite por esta Cidade –, e ele deve assim dormir o dia todo, porque nunca o vi andando pelas redondezas durante o dia, se bem que não saio muito: sou quase um recluso pra falar a verdade, e porque quero é claro, escapo de meu recôndito apartamento o suficiente para ir até a esquina e comprar comida e comprar velhos livros num sebo decadente pois meu computador está quebrado [não consigo conectar-me à Rede e assim fico sem material para furtos, por isso a estúpida Revista de Medicina retrocitada] assim como o telefone [crise de depressão], quem sabe eu dou um jeito com a comunicação interna do Condomínio; o Editor de hábito manda um motoboy pela manhã para pegar os contos que passo por debaixo da porta para a digitação deles, acho que depois de uns dez contos conseguirei pagar o conserto de minha infra-estrutura e aí sim nem precisarei descer, aqui tenho tudo o que preciso – e daqui da janela vejo tudo quando o homem insone, ao pegar a calçada de acesso ao meu edifício, começa a andar devagar, os passos agora entreouvidos precisos, um a um, sem eco, pés de cautela: terá visto o cadáver? Um Conflito!

Um flash estoura em minha mente: um morto em meu caminho – esse insone é maluco: ao invés de, percebendo o cadáver, andar mais veloz, modera o passo [cá entre nós que ninguém nos escute, somente o fato de ele caminhar à noite para curar sua insônia já o faz meio louco, mesmo eu tentei fazer isso algumas ocasiões para tratar da minha, no entanto os vizinhos não são muito compreensivos e reclamaram ao síndico do barulho que saía dos meus pés, apesar das meias, fato que muito me constrangeu] – e o homem vindo, vindo, vindo com o meu Conflito. Ele agora está bastante próximo do morto e pára aos pés dele. É. Pára – e olha. O quê? Bom, seu idiota, o mesmo que você está vendo, um corpo estendido no chão. Mira o resto do corpo. Por que o espia? Pena? Conhece-o? Viu este rosto em algum cartaz Gratifica-se quem encontrar? Melhor apanhar o binóculo novamente. Os dois estão bem debaixo da minha janela, devo ser cuidadoso e não fazer nenhum ruído que me denuncie e estrague a cena. Não é todo dia que a gente topa com um Conto nascendo bem debaixo do nariz, pra falar a verdade acho que nunca me aconteceu. Nada deduzo das faces do cadáver a não ser que sorriem e são, como disse, sólidas. O morto não ri com os dentes, os beiços bastam. Do rosto do insone nada sei, somente vejo seu cocuruto. O homem, parado. Ambos estáticos. Até eu, o ar, estacamos. Então pressinto que não é a cara do cara que o insone observa. Não, não o rosto. É algo abaixo. Não a camisa xadrez, aberta no peito, pêlos escapando dela. Não; deve ser a calça marrom de pernas rotas em V e entre elas uma braguilha escancarada por onde escapa um pênis duro, um pau bem duro, duro, duro.

Um morto sorrindo de pau duro! Este Conto está se saindo melhor que a encomenda, não pode ser verdade. Ou então o morto não está morto. É um cara que dorme, e, além, talvez sonhe. Com o que sonha para ficar assim, tão inflexível, tão imóvel, tão imenso? Não; não é rigor mortis. O homem tem um sonho que o deixa excitado. E um outro homem, que não dorme, e não sonha, observa-o. Pois sim, o insone mantém os olhos fixos no membro do cara que sorri e sonha. Grande idéia para um Conto!

Bem ao alcance da mão – digo, dos olhos. Por que o insone não tira os olhos dali? Será um tarado? Um outro Escritor sem assunto? Mas não, está somente parado, olhando e olhando. No que pensará? Que, enquanto não consegue dormir, outro homem, muito mal-vestido aliás, diferente dele, dorme, e dorme na rua, e que além de tudo sonha, e que ainda por cima excita-se com este sonho? É um pênis enorme, no entanto eu queria mirar o rosto do insone, adivinhar-lhe a mente através da expressão. Sentirá desejo? Revolta? Inveja? Dó? Quem sabe, medo? Medo de que o outro desperte e o veja assim, frágil ante a verdade de um homem grande e seu membro, que sonham. Pois, de certa forma que não sei precisar, é responsável pelo sonho do outro. Porque, para que um durma, outro deve velar – e por este motivo não pode sair dali. Entretanto, tem de tomar alguma decisão. Não pode manter essa pose indefinidamente estática à mercê da ereção do sorridente sonhador. Talvez, o homem que sonha não saiba que o zíper de sua calça está aberto, e é um crime deixá-lo nesta inocência aos olhos dele mesmo, e dos outros homens. E não seria errado o que faz? Espiar outro dormir. Espionar um desconhecido tendo um estranho sonho. E isto, igualmente, não se trataria de um crime? E pior? E mais grave, e mais… insolente? O insone pensa: parece até que você sabe. Parece até que você sabe que eu estou olhando para você: por isso sorri. Uma espécie de vingança, esse seu sonho erótico. E o outro responde: você chegou aqui como quem não quer nada, me vê aqui deitado, pensa que eu tô morto, vem curioso, me vê alegre, tua curiosidade se acendendo mais e mais, e aí, catapimba: me vê de pau duro – te peguei! Nunca vai poder fugir disso. Jamais conseguirá apagar da memória o dia em que viu um homem burlando uma lei antiga, aquela que diz: nenhum homem velará o sonho de outro homem sem se envolver com ele – mas você pensou que poderia fugir de minha felicidade, enquanto seus olhos pediam um acréscimo – e aí está! Meu pau duro triunfando sobre essa sua maldita curiosidade. Meu sono duro como o eu jamais o foi. Meu sonho puro feito água limpa que te afoga. E é por esta razão que, cuidadosamente, o homem que não sonha apanha da calçada um papel velho e suave o coloca sobre o pênis do homem que sonha.

Sempre espiando cauteloso por sobre o ombro – como pensei, sua expressão é de extremo pasmo – dá um passo, e se sente aliviado, dá dois, e se sente livre, dá mais outro, e é homem outra vez, senhor de seus passos noturnos e anônimos. Caminha ainda devagar, sensação quente no peito, como se tivesse feito a sua boa ação do dia e tivesse ganho uma estrelinha no céu como se conta a alguém uma mentira que fizesse bem – e anda resoluto até a esquina. Subitamente, detém-se, em sua mente um último chamado do homem ignoto com o qual travara tão estranha e extenuante luta. Então, uma brisa quente ilumina-lhe os olhos de horror, pois o papel flutua no ar a um metro do triunfante membro até cair no meio da rua.

Terrificado: os olhos convulsos de pavor, o vapor da noite desenhando-lhe na cara a surpresa, passa as mãos nos cabelos empastelados, tira um pente ordinário do paletó, penteia-se – e pensa: vou voltar até o homem e recolocar o papel sobre ele; contudo, isso é impossível agora, seu crime está descoberto; o papel, tábua de salvação, retirado do sonho do outro por alguma invisível e implacável mão. Assim, para ele é claro o sonho do outro, e lhe pesa longamente sobre os ombros todo o seu cansaço e toda a sua insônia – mas o pior de tudo mesmo é que ele não é o único a saber disso: alguém mais deve saber.

Sim, um outro além o conhece, e contará a muitos outros o seu crime. À sua mulher, inclusive [ela saberá então que tinha esse hábito de espiá-la por entre as dobras do sono.] Ao seu patrão, inclusive [confirmar-se-á a sua inconfiabilidade e a sua indiscrição, inadequadas a um subordinado, causando-lhe uma vexatória reprimenda]. À sua mãe, inclusive [quando garoto deveria inventar ter medo para poder se deitar na mesma quentinha cama que ela, só para poder fingir que dormia e roubar seu sonho]. Sim, todos saberão. Logo, trêmulo, anda dois passos para frente; o sorriso do sonhador, límpido e grande e branco e estático, o vento calmo na noite erma que grita calor em seus ouvidos – e o insone não mais pressente, sabe, sabe que alguém mais sabe de seu crime, para o qual não existe expiação suficiente, e, ainda assim, como todos os condenados que perderam sua dignidade e condição de homens íntegros, anseia compartilhá-lo com alguém, que seja esse desconhecido alguém – e então torna o olhar para o outro lado da rua, para a esquerda, para a direita, para trás de si, e nada vê, nem sombra, no entanto ainda sente essa presença inquietante, e dá mais dois passos na direção do sonhador e uma última vez contempla seu sorriso e nesse fitar compreende a espada sobre sua cabeça: desejando com todas as forças me surpreender, calmamente levanta e levanta e levanta o queixo, e o rosto, e os olhos – e antes que ele me veja, porém, rápido, saio da janela, corro para a mesa, sento-me à velha máquina de escrever que me foi enviada pelo Editor para quebrar meu galho. E começo a escrever o Conto. Ainda que tenha a sensação de um certo vazio, são quatro e meia da manhã e preciso entregar o Texto às nove, não há mais tempo e se o Editor não gostar desta história que se dane ele, e eu também, pois não terei Dinheiro para pagar a prestação do imóvel, eu que, solitário disperso nessa Cidade, não disponho de outros rendimentos nem de outrem a quem recorrer. O problema é que esta sensação de vazio me prende os movimentos dos dedos; meus olhos ainda algemados à cena da rua, querendo o prosseguimento da narrativa; bom, afinal de contas, já a compreendi, nada mais poderá acontecer, escuto passos – devem ser os do homem insone. Óbvio que ele fugiria. Uma coisa me deixa na dúvida: teria ele me visto?

Não… impossível; somente a luz fraquinha da luminária não chegaria até ele… ainda assim, como poderia provar que o observava? Não: eu saí antes. Não, é evidente que não me viu, e mesmo dessa forma estou muito bem seguro, aqui… é, só se viu o reflexo das luzes de mercúrio nas lentes do binóculo. Não, mas o que é isso… não poderia sequer vislumbrar isto, usa óculos, deve ser míope… me viu ou não? Apesar desse susto e dessa suspeita, não posso deter minha curiosidade… e lentamente, cabisbaixo e hesitante, coloco primeiro o nariz no parapeito, em seguida a cabeça, giro-a para baixo e vejo, lá na mesma calçada campo de batalha de antes, uma radical mudança: tanto o insone quanto o sonhador desapareceram. Imaginação minha? Avanço um pouco mais o pescoço e nada: nada vejo na calçada, na rua, na esquina, na Cidade, os dois foram mesmo embora, nem me avisaram – onde estava com a cabeça para retirá-la do posto de observação precipitadamente? Agora, acabou-se; bem-feito, comecei a escrever antes da hora e perdi o final do Conto… entretanto, não: é esse mesmo, o fim da história: os dois se foram, felizes; mas será que foram mesmo? Não seria esse um fecho enganoso? Pra onde é que foram? Ah… vamos deixar isso pra lá. Isso não interessa mais. Importa o Conto, que agora redijo, importante é que não foi outra madrugada vã e que arranjei um assunto, e uma história, e quem sabe após tudo acabado, uma boa grana; e depois disso dormirei um pouquinho, até as nove, e quem sabe sonhar, não sem antes dar comida aos peixes e que falta fazem a um grande Escritor um cigarro e uma bebida, se bem que isso deve dar uma tremenda dor de cabeça, vou me deitar.

Mas o pior de tudo mesmo nessas noites quentes não é o mormaço, nem a insônia, e sim o silêncio, depois de meia hora que se tenta dormir, as marteladas de uma distante e absurda máquina de escrever ressoando ainda nos tímpanos, o silêncio quebrado por passos leves e sorrateiros que andam apressados no chão perto, perto, perto, cada vez mais próximos de mim, violentamente penetrando na minha cabeça, passos traiçoeiros de alguém que não posso encarar pois tenho os olhos firmemente apertados e não vejo e no entanto sei, somente sei, que esse alguém está sorrindo, e me olhando.

Inverno, 1992.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 9:57 pm

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Bacanal

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Meu coração, não sei por quê.
[João de Barro]

Serei feliz, bem feliz. Orlando contemplou Alice ao seu lado, enquanto dirigia ansioso o carro para a suíte presidencial. À entrada do motel, a recepcionista pegara os RGs do casal e não desconfiara de nada. Talvez, até uma estranha não duvidasse da coincidência entre a Alice do carro, menor de idade, e a da fotografia antiga – as mulheres de hoje fazem tanta plástica. Ele apanhou a garota nos braços, autêntico noivo. Sentiu-se viril, rejuvenescido pelo corpo delgado e leve de Alice: degrau a degrau, o sorriso dos olhos dele nos da garota, distraída.

Pousou-a na cama redonda, deslizou dedos no painel de controle, escolhendo a iluminação mais adequada, no rádio a estação que tocasse suas músicas favoritas, de décadas atrás. Espera um pouco, amor, vou tomar um banho antes. Alice somente sorriu.

Sem querer, ouvindo do rádio o som em consonância com as bolhas de sabão pelo peito de pêlos brancos, Orlando lembrava-se da outra Alice, a do tempo de suas canções. Existira apenas um encontro, num lugar furtivo como este, e ela furtivamente fugira. Para nunca mais. Esquecida sobre a penteadeira, a cédula lhe identificava os dezoito anos – por muitos outros banhada no beijo e na lágrima de Orlando.

Então, há um mês, encontrara esta Alice, algum tempo mais nova. Prometeu a ela o céu. Não podia menos, ou mais. Ela só calou. Ele entendeu um consentimento. Pediu-a para sempre. E ela só calou. Enfim – resolvera – ela deve ser jovem demais para compreender o que sofri. Que só eu a ame, já bastará. Serei feliz. Colocou o roupão, à mostra uma grossa corrente de ouro. Minuciosamente, penteou os pêlos do bigode grisalho para cima. Saiu do banheiro assobiando, entre névoas.

Cercada por espelhos, o rosto de Alice resplandecia, pálida e lunar. Insondável. Orlando ajoelhou-se sobre os lençóis à frente da garota. Num arroubo, suspirou: – vem! vem sentir o calor – enlaçando-a, beijou seus lábios macios, tirou-lhe as roupas, sempre carinhoso, gaguejando umas palavras que a moça não conhecesse, talvez. Nua, o coração de Orlando bateu feliz: a pele claríssima de Alice brilhava e exalava um intenso perfume almiscarado. Passando as mãos pelos cabelos dourados dela, ele beijou-lhe a boca, suave. E, com muito cuidado, a penetrou. Sentiu-se todo circundado por um tremor; a emoção da noiva, imaginou, a deixar a virgindade. Amou-a lentamente, todo, banhou-a em suor; não se cansava de lhe declarar seu amor – nem mesmo quando, traiçoeira, sua mente recordava-o da outra Alice, a que fugira, e alertava-o de que esta, mais jovem, fatalmente escaparia também. Depois de horas e carícias, exausto, ele puxou-a para seu peito. Observou a ambos no espelho. Não importa o que virá, não interessa – suspirou, voltando a beijar-lhe os seios, perfeitos. No teto, os olhos de Alice abriam-se, luminosos como ônix, como em delírio.

Pelos três andares da suíte, Orlando ensinou à noiva passos tensos de velhas danças. Em seguida, mergulharam na piscina. Relaxado, Orlando saiu para buscar uma bebida para os dois; ao retornar, paralisou-se, mirando Alice de braços abertos a boiar, tranqüila – sem querer, novamente, a idéia tola: – mas, mesmo assim, foges de mim. Caiu na piscina e nadou até ela, furioso; abraçou-a com força, tentando espantar os maus pensamentos. Ah, se tu soubesses… e colocou-se dentro dela outra vez, e desta, sem cuidados, rude: ela tremeu, tímida, ou assustada. Em seu jeito misterioso, inatingível. Orlando amava-a, e respingavam água morna.

No entanto, seus dentes nos lábios de Alice foram traiçoeiros: ela começou a sangrar. Como se nem tivesse sentido o ferimento, ainda assim oferecia a ele a boca. Orlando, horrorizado, percebeu nos olhos de Alice o perigo, a pressão baixa: e embora ela não se queixasse, seu corpo todo tremia, se soltava, em desespero Orlando tentava verter os pulmões inteiros para o corpo da garota, que só fazia mergulhar aos espasmos na piscina; o coração dele, batendo apressado, pressentiu que seu beijo havia sido fatal – a cada abraço Alice mais mole; no fundo d’água, o peito dele, unido ao da boneca inflável, doía, Orlando viu que Alice nenhuma fugiria, nunca mais: um cansaço tomou-o. Era feliz.

Verão, 1990.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 9:51 pm

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Aos meus olhos de cão

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Mas não era a noite a me tolher os passos: talvez fosse uma saudade. Nuvens explodiam à luz de minhas lembranças e por trás delas o cão veio descendo devagar e mudo a rua que dá pro beco; um negro cão pastor. Eu só bebendo e olhando, não gostando nada da idéia de companhia. Eu só me basto. Descendo, a besta. Chegou perto, parou, encolhendo o rabo prum lado. Me mandou um olhar tão imponente quanto uma lata de lixo. Se sentou, levantou o pescoço para o céu cinza e uivou.

Latiu infinito por entre os minutos. Uivo veludo, suspenso em um mistério limpo, só um sussurro de voz. Me irritei, o mandei embora: ele não parou de uivar – e eu tive medo, um medo muito grande, que meus ouvidos sangrassem.

Chutei-o, de leve, ele se virou sem interromper seu vulto de canto. Volteou-me, investiu sobre mim. Chutei mais uma vez, agora com força: o animal rosnou-me ultimatos, me vomitando urro em cima de urro. Chutei de novo, lhe dei um pisão no dorso, outro pontapé e, feito despertasse dum torpor, já socava o cujo, sempre aquela rouca voz me penetrando os tímpanos; o cão uivava e correu de encontro à parede pichada: peguei uma garrafa, acho que de cerveja, ali do chão, bati contra o muro, batia contra a cabeça do cachorro: entanto, ele não parava, não sustava seu olhar e seu grito; perfurei seu corpo, no estômago talvez, no meio dumas manchas de sarna, o animal já não fugia de mim, se deixava ferir, se entregando nunca tirando seus olhos dos meus, eu chutava e cortava, rasgava e feria, suicidando o cão às minhas mãos; se deteve em seu canto, parou, parou de uivar, brilhante entre cacos de vidro, e no que eu chutava, chutava, batia e batia, ele não dava um gemido só: só escutava ossos quebrando-se, sem parar, cartilagens rompendo-se, sem parar, vasos sangüíneos esfacelando-se, sem parar o cão jorrava sangue, fervente, viscoso vivo eu me lavava no estranho líquido de cheiro amargo cavando um buraco em minhas narinas e um gosto doce na língua, cansado súbito parei rindo e com as mãos cortadas sangue na cara nos olhos súbito parei os cabelos empastelados nas têmperas súbito parei o cão morreu.

Os olhos fixos em mim.

Respirando forte, arranquei de suas órbitas aqueles satélites pretos e os atirei longe; foram rolando paralelos até o meio do beco. Pararam. Continuando a me vigiar.

O vento de novo.

Apago o cigarro numa dessas cavidades úmidas, não vou esperar mais. Me levanto. Então, a garrafa tomba, talvez por efeito do vento, ecoando seu sopro de vidro, derramando o fluido dourado. Viro, me agacho, e, ao me aproximar, vejo na poça turva o reflexo inteiro da alta lua.

Uma nuvem passa entre pensamentos ralos.

Depois, somente meus olhos de cão.

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Inverno, 1988.

Written by rbressane

fevereiro 21, 2008 at 9:33 pm

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